M. D. #16 – Apocalipse, misantropia e fake news de zap na Primeira Guerra
Amarelo-Cromo, de Aldous Huxley, mais uma tradução minha que saiu há pouco
Quando falamos dos romances de Huxley, é inevitável pensarmos em Admirável Mundo Novo, o seu grande romance distópico, etc e tal. Esse livrinho eu mesmo li no primeiro ano da faculdade, na edição da Globo Livros, por indicação de uma colega que gostava demais dele. Nunca imaginei que eu fosse de fato virar tradutor do Huxley, e agora, depois do Filosofia Perene e do Moksha, dois livros mais ensaísticos, foi uma realização encarar o meu primeiro Huxley romancista. E aqui “primeiro” é o primeiro mesmo, já que Crome Yellow foi o romance de estreia do autor, publicado em 1921, depois de algumas coletâneas de poemas, e que saiu em junho deste ano no Brasil pela Biblioteca Azul da Globo com o título Amarelo-Cromo.
Observar os primeiros esforços de alguém que mais tarde se consolida como um dos Grandes Nomes™ é sempre um exercício interessante, o que vale para um primeiro romance, tanto quanto para uma fita demo de uma banda que você goste ou qualquer coisa assim. Imagino que muita gente tenha tido já essa experiência, de ir atrás desse material precoce de uma banda conhecida e se deparar com aquela produção mais tosca, muitas arestas por aparar, mas já algo de um lampejo de brilhantismo que vai se desenvolver depois.
No caso do Huxley, o que me chamou a atenção foi o quanto Amarelo-Cromo é um romance singelo. Suas ambições são bastante contidas e o autor parece consciente de sua condição de estreante. Não é aquela coisa de tentativa de uma virtuose que ele ainda não cacife para bancar, que a gente às vezes observa em livros de estreia, mas algo muito mais controlado, a meu ver. O que ele nos apresenta é um apanhado de cenas cotidianas com personagens da alta sociedade inglesa do começo do século XX. A graça do romance está em sua capacidade de observação de costumes e seu senso de humor, e Huxley cumpre esse objetivo magistralmente.
O primeiro capítulo nos apresenta o nosso protagonista (na medida em que o romance tem um protagonista, já que é mais um ensemble cast do que qualquer outra coisa), que é a figura meio patética de Denis Stone, um poeta de 23 anos que aparece chegando de trem, depois pegando sua bicicleta, rumo a uma mansão na região de Crome (o título é um trocadilho entre o nome da região e essa tinta amarela), onde vai ficar durante uns dias. Aparentemente isso era normal na alta sociedade da época, as pessoas simplesmente chegavam de mala e cuia e ficavam lá dias a fio na casa das outras, sem fazer muita coisa. Na última cena, nós o vemos ir embora – e assim o livro todo é um recorte desse período que ele passa lá, as coisas que ele e os outros convidados fazem e observam. Outros membros do elenco incluem:
A família Wimbush, que é dona da mansão, incluindo Henry Wimbush, um historiador empenhado em contar a história da família, sua ociosa esposa Priscilla, que estuda teosofia e usa astrologia para tentar prever o resultado de jogos e corridas de cavalo (hoje seria viciada em Bets e no Tigrinho, com certeza), e a filha Anne, a paixonite de Denis;
O sr. Scogan, um velho cínico e misantropo, cuja aparência é descrita como “um daqueles pássaros-lagartos extintos do Terciário”, com prazer em constranger os outros;
Mary Bracegirdle, algo como uma flapper, que ninguém leva muito a sério, em parte por conta de sua aparência (muitas vezes descrita como infantil);
Gombauld, o pintor (que tem com Denis uma certa rivalidade pelo afeto de Anne);
Jenny, uma mulher surda que tem por hobby fazer caricaturas;
Ivor, o playboy e o melhor exemplo dessa tirinha aqui do Rafael Salimena:
Um dos grandes momentos é o aparecimento de Ivor, aliás, que chega de carro (num livro da década de 20, bom frisar… é um acontecimento), deixa todo mundo deslumbrado com seus muitos meios talentos, transa com uma das moças na torre da mansão (os dois decidem dormir ao ar livre naquela noite por estar muito calor e aí uma coisa leva a outra) e depois vai embora, deixando-a deprimida pelo resto do livro. Ao partir, ele compõe um poeminha horroroso de despedida, um soneto, que fica no guestbook. Reproduzo-o abaixo na minha tradução:
“Dos reis esta magia que perdura, Tecendo encantos pela noite quieta N’alma dorme de toda criatura; Desde a asa auricular da borboleta Ao mar azul, à acrocerâunia altura, E orgíacas visões do anacoreta; Tudo que canta, e ao cantar flutua, No amor, na dor, na diversão seleta. Um feitiço maior e mais ferino Tece aqui a sua mágica em meu ser. Crome chama, em voz de sino vespertino, Qual necrópole, faz-me estremecer. Levam-me os fados. Ai! Minh’alma chora Quando a Crome, longínquo lar, rememora.”
Eu adoro quando me dão um livro de prosa que tem poeminhas no meio, porque é bom botar para jogo o meu treinamento e experiência como tradutor de poesia em algo que as pessoas vão ler de verdade. Mas, enfim. A piada aqui é que o playboy quer soar muito culto e usa a palavra “auricular” ali sem se dar conta do que ela significa de fato. Denis e o sr. Scogan passam, então, um capítulo inteiro discutindo essa patacoada e lamentando o fato de que as palavras nem sempre têm o sentido que elas deveriam ter, com base na sua sonoridade.
Em outro momento, aparece o sr. Barbecue-Smith, autor de livros de autoajuda com um viés meio esotérico1, que ensina para Denis o seu macete para escrever através de um tipo de transe, aparentemente sem se dar conta de que Denis, um poeta, não o considera um igual nas letras. Diferente de Denis, porém, o sr. Barbecue-Smith é bem-sucedido, inclusive financeiramente. Numa das cenas finais, o pessoal de Crome organiza uma feirinha, com música e atrações e tudo o mais, e Denis fica encarregado de escrever um poema para imortalizar o momento. Dos tantos exemplares do folheto com o poema que eles imprimem, só três são vendidos, e Anne passa a incluí-los como brinde para cada um que gasta mais de um xelim com o chá.
Quando a pessoa opta por ser poeta ela assina embaixo mesmo que está disposta a se submeter a esse tipo de humilhação.
Mas é claro que há uma dimensão mais profunda à empreitada toda. Trata-se de um romance do período entreguerras, que é uma expressão hilária de se usar (em retrospecto e num sentido muito mórbido da palavra “hilária”), porque como assim entreguerras? A Primeira Guerra Mundial foi chamada de “A Grande Guerra” e “A Guerra Para Acabar Com Todas as Guerras”. Mal sabia a Europa que era apenas um ensaio para algo muito pior. E essa ansiedade se infiltra nesse romance de um modo bastante mordaz.
Em um dos capítulos, nós acompanhamos os pensamentos do sr. Bodiham, o vigário da paróquia local frustrado com a imoralidade e indiferença do seu rebanho. À vista dele, a Primeira Guerra foi um momento crucial para os cristãos, pois era um sinal claro do fim dos tempos e da necessidade de todos se arrependerem. Os acontecimentos da Guerra são vistos, num dos panfletos que ele circulou à época contendo um de seus sermões, sob a ótica do simbolismo do livro do Apocalipse. Desnecessário dizer que o padre ficou muito decepcionado quando o mundo se recusou a acabar: “O argumento era sólido e absolutamente convincente; e ainda assim — fazia quatro anos desde que pregara aquele sermão; quatro anos, e a Inglaterra estava em paz, o sol brilhava e as pessoas de Crome continuavam tão perversas e indiferentes quanto sempre haviam sido — senão mais, de fato, se é que isso era possível.”
Em vez disso, o dom do profetismo aqui é inadvertidamente dado para o sr. Scogan, que atende na feirinha de Crome como a madame Sesóstris, vestido de sortista e prevendo muitas desgraças aos clientes, enquanto lambe os lábios de prazer misantropo. Quando perguntam se vai ter mais uma guerra, ele diz, com um “ar tácito de confiança”: “Muito em breve”.
O sr. Scogan, aliás, rouba as cenas com frequência. Suas ideias e visão de mundo são hediondas – vamos deixar isso claro, – mas essa é, para mim, uma das coisas mais incríveis que a literatura pode fazer, que é nos permitir esse contato próximo com gente que, na vida real, teríamos vontade de agredir.
Num capítulo anterior, ele discute a questão da reprodução humana e apresenta a todos as ideias que Huxley vai desenvolver depois em Admirável Mundo Novo: “Em vastas incubadoras do Estado, fileiras e fileiras de garrafas grávidas fornecerão ao mundo a população necessária”. Em outro momento, ele desenvolve sua teoria de que cada pessoa é um César em potencial e se diverte em tentar identificar qual é a personalidade cesariana de cada um dos presentes (Denis é um possível Nero, Ivor um Calígula). Mais para o final ele tem uma conversa com Denis em que apresenta a sua ideia de um “Estado Racional”, que divide cinicamente a humanidade entre as “Inteligências Diretivas, os Homens de Fé e o Rebanho”.
Em meio a todas essas patacoadas, porém, há momentos em que o sr. Scogan toca, sim, em pontos nevrálgicos:
Neste exato momento – ele prosseguiu, – os mais pavorosos horrores estão acontecendo em todos os cantos do mundo. Há gente sendo esmagada, retalhada, estripada, mutilada; seus cadáveres apodrecem e seus olhos se putrefazem junto com o resto. Gritos de dor e medo pulsam no ar num ritmo de mil quilômetros por hora. Após três segundos nessa velocidade, tornam-se perfeitamente inaudíveis. Estes são os fatos perturbadores; mas será que encontramos menos prazer na vida por conta deles? Com certeza, não é o caso. Nós nos compadecemos, sem dúvida; representamos para nós mesmos, na imaginação, e deploramos os sofrimentos das nações e indivíduos. Mas, no fim das contas, o que é o compadecimento e a imaginação? Pouquíssima coisa, a não ser que a pessoa por quem nos compadecemos por acaso tenha algum envolvimento íntimo em nossos afetos; e mesmo nesse caso não se vai tão longe. E é bom também; pois se alguém tivesse uma imaginação vívida o suficiente e uma compaixão suficientemente sensível de fato para compreender e sentir os sofrimentos das outras pessoas, essa pessoa jamais teria um momento de paz de espírito. Uma raça verdadeiramente empática jamais sequer chegaria perto de saber o significado da felicidade. Porém, por sorte, como eu já disse, não somos uma raça empática. No começo da guerra, eu pensava ser capaz de sofrer de verdade, por meio da imaginação e da empatia, ao lado daqueles que sofriam fisicamente. Porém, após um ou dois meses, precisei admitir com honestidade que não era o caso. E, no entanto, acredito que eu tenha uma imaginação mais vívida do que a da maioria. No sofrimento, se está sempre sozinho; o fato é deprimente quando você é, por acaso, aquele que sofre, mas é o que torna o prazer possível ao restante do mundo.
A sombra da Primeira Guerra paira sobre Amarelo-Cromo de um modo bastante peculiar, menos como uma sombra de fato cobrindo a mansão de Crome e mais como um lembrete desagradável no qual a gente esbarra de quando em quando em meio a atividades mais frívolas, como bailes, feirinhas e festas na piscina. O que torna esse romance particularmente pungente para a nossa época, mais de cem anos depois de sua publicação original, é o fato de que nosso comportamento não é muito diferente do desses personagens. Nas profecias do Segundo Advento do sr. Bodiham, é só trocar as menções à Primeira Guerra por COVID-19 que o seu sermão se torna perfeitamente contemporâneo. Para não falarmos nada do estado de catástrofe climática que virou o pano de fundo para nossas vidas.
Em certo momento, tem até uma senhora que cai no equivalente de uma fake news de zap que saiu no jornal:
Foi a sra. Budge quem, após ler no Daily Mirror que o governo precisava de caroços de pêssego (o motivo, ela jamais descobriu), fizera da tarefa de coletá-los a sua “parte” peculiar da colaboração com os esforços de guerra. Possuía trinta e seis pessegueiros em seu jardim murado, além de quatro estufas nas quais era possível enfiar mais umas árvores, de modo que podia comer pêssegos ao longo do ano inteiro, praticamente. Em 1916, ela comeu quatro mil e duzentos pêssegos e mandou os caroços para o governo. Em 1917, as autoridades militares convocaram três dos seus jardineiros e, com isso e o fato de que foi um ano ruim para as árvores frutíferas em espaldeira, só conseguiu comer dois mil e novecentos pêssegos durante aquele período crucial do destino nacional. Em 1918, ela se saiu um tanto melhor, pois comeu três mil e trezentos pêssegos entre o primeiro de janeiro e a data do armistício. Desde o armistício, ela relaxara seus esforços; agora não comia mais do que dois ou três pêssegos por dia. Reclamava que sua saúde sentira o baque; porém o baque fora por um bom motivo.
É comum descreverem Amarelo-Cromo como uma sátira, mas a sátira é um gênero complicado, porque há sátiras e sátiras. Em suas formas mais simples, trata-se de um gênero otimista, que aponta a arma do riso para as falhas na sociedade, tipo “olha que coisa escrota”, sugerindo a possibilidade de corrigi-las e eliminá-las. Nos seus melhores momentos, um seriado como South Park faz isso, como quando seus criadores entraram em guerra com a Cientologia.
É possível ler Amarelo-Cromo por essa chave, tipo “haha, como eram ridículos os ricos do começo do século XX”. Porém, tem aquele verso em Horácio que diz, né, Quid rides? Mutato nomine et de te fabula narrator (“Do que ris? Mudando os nomes, a narrativa fala de ti”)… e, assim, há casos de sátiras mais profundas, swiftianas, em que o espírito satírico entra em metástase e esse riso adquire uma qualidade mais dolorosa e até desesperada. A estreia de Huxley romancista me parece se encaixar nesse gênero e, mais do que apenas apontar para a grandiosidade futura do autor, representa uma pequena pérola da literatura tragicômica e, ao que tudo indica, deve “se manter atual” (odeio essa expressão, mas…) durante muito tempo.
Amarelo-Cromo está disponível nas melhores livrarias e no site do careca arrombado. Recomendo também lerem a resenha da Angélica Frangella no Jornal Nota.
Nem vou falar nada sobre a minha demora em atualizar a newsletter desta vez, porque, a esta altura, esses atrasos já viraram Um Fato Da Vida.
Assinar a Mercurius Delirans literalmente não custa nada e eu não tenho planos de monetizar a newsletter tão cedo. Se eu te ajudei a se distrair um pouco das dores da existência neste plano físico e você quiser dar uma força, sempre pode comprar meus livros.
A teosofia e o esoterismo permeiam este romance o tempo inteiro, como reflexo da circulação dessas ideias na época. No entanto, na medida em que a gente pode falar em “intenções do autor”, não me parece que Huxley estaria criticando essas noções por si só como meras bobagens, haja vista que, mais tarde, ele mesmo vai estudar com um iogue, o Swami Prabhavananda, e escrever um livro inteiro sobre espiritualidade, que é o seu Filosofia Perene.
Parabéns pela tradução! Mas devo confessar que detesto admirável mundo novo, até falei mal dele em um congresso em julho haha