Mercurius Delirans #02 - Um fantasma num país devastado: ou, nosso irmão, o... Sri Lanka?
As sete luas de Maali Almeida, de Shehan Karunatilaka
Eu tenho dado sorte de pegar umas coisas muito legais para traduzir nesses últimos tempos, e As sete luas de Maali Almeida (publicado originalmente em 2020 lá fora e este ano no Brasil, pela editora Record), o segundo romance de Shehan Karunatilaka, foi uma delas. É um livro que deu um bom trabalho, mas eu fiquei particularmente orgulhoso dessa tradução. Lembro de ter folheado (?) o livro (dá para folhear um pdf?) brevemente e pensado, “puta que pariu, isso aqui é bem a minha praia”. E, considerando o tempo e a atenção que eu dediquei a ele, imagino que seja normal que eu tenha algumas coisas para dizer a seu respeito. A newsletter, afinal, tem essa função de ser o lugar para eu despejar essas coisas e não explodir1.
As sete luas é um romance ambientado no Interstício, outro nome para o além - e uma daquelas visões burocráticas do além, como em Sarte ou Beetlejuice. Nosso protagonista é Malinda (Maali) Almeida, um fotógrafo de guerra de 34 anos, gay (ou melhor dizendo, “um belo homem que gosta de garotos bonitos”), com vício em jogo e autossabotagem. Um belo dia, ele acorda morto e os funcionários do Interstício designados para cuidar dele, a falecida dra. Ranee, uma ativista morta por terroristas, e seus assistentes, a quem ele chama pelos apelidos de “o Moisés” e “o He-Man”, o informam que ele tem sete dias (“sete luas”) para cumprir uma pequena lista de tarefas a fim de chegar à “Luz”. Do contrário, ele ficará vulnerável a outros habitantes menos agradáveis do Interstício, seres infernais que se alimentam de dor e sofrimento... o que não falta no Sri Lanka devastado pelas disputas internas e massacres dos anos de 1980 e 1990, em que se passa o romance.
Maali, no entanto, é teimoso e não quer ir para a Luz sem antes dar um jeito de fazer com que suas fotografias mais preciosas vejam a luz do dia e sem descobrir como foi que ele morreu. Considerando o trabalho que ele fazia, as várias facções ativas no país nesse período (os Tigres, o JVP, a Força Tarefa Especial do governo, etc), suas dívidas de jogo e vida sexual arriscada, é mais fácil perguntar quem não iria querer que ele acordasse com a boca cheia de formiga. De fato, parece que as únicas pessoas que se importam com Maali são sua melhor amiga, a Jaki, e o primo dela, o DD, filho de um ministro que também tem bons motivos para querer Maali longe do seu piazão.
O que temos, então, é um romance com elementos fantásticos, intrigas políticas, uma história triste de amor homoafetivo e uma história de detetive em que o detetive e a vítima são a mesma pessoa. De quebra, tem também um joguinho formal interessante, pois o narrador não é nem na primeira, nem na terceira, mas na segunda pessoa2:
Você acorda com a resposta para a pergunta que todo mundo faz. A resposta é Sim, e a resposta é Igual Aqui, Só Que Pior. E essas são as únicas revelações que você vai ter. É até melhor voltar a dormir que você ganha mais.
Como eu falei, puta que pariu, isso aqui é bem a minha praia.
No mais, confesso que eu não sabia nada sobre o Sri Lanka e foi interessante aprender sobre o país no processo de fazer essa tradução. Segundo o Mahavamsa, um tipo misto de épico e crônica histórica do século V que narra as origens lendárias do país, ele teria sido fundado pelo príncipe Vijaya, o resultado de um episódio dramático de Casos de Família. Uma princesa indiana é estuprada por um leão e tem um casal de filhos. O menino mata o pai leão (Freud teria amado essa história) e se casa com a irmã. O filho do casal incestuoso, o príncipe Vijaya, se torna um arruaceiro que é exilado e chega às margens da ilha com seu bando de piratas. Então ele seduz Kuveni, rainha do povo nativo da ilha, chamados de Naga, que, ao que se entende, eram espíritos da floresta que acabam massacrados, e ela mesma lança uma maldição sobre a ilha antes de cometer suicídio.
E isso são as origens do país. Pois é.
E, de algum modo a coisa consegue piorar muito depois, porque o Sri Lanka acabou sendo colonizado, primeiro pelos portugueses, que chegam lá pouco depois de chegarem aqui, em 1505 (daí que o nosso protagonista tenha o sobrenome Almeida); depois pelos holandeses, em 1656, como resultado de uma aliança que o rei fez com esse povo para tentar expulsar os portugueses e que deu tão certo que os holandeses decidiram ficar por lá mesmo. Por fim, chegam os ingleses em 1815, dos quais o país (então chamado de Ceilão) obtém sua independência só em 1948.
No mais, porque desgraça pouca é bobagem, há também conflitos entre grupos étnicos nativos. O grupo majoritário são os cingaleses, ou Sinhala, falantes de uma língua indo-ariana e praticantes, no geral, de budismo Theravada. Entre os grupos minoritários, temos os burghers (descendentes de nativos com colonizadores), os chamados “mouros” (que praticam o islã) e principalmente o povo tâmil, uma minoria de 3 milhões de pessoas, falantes de uma língua dravidiana (existem tâmeis também na Índia, mas em termos de etnia e idioma, os tâmeis do Sri Lanka têm as suas especificidades) e praticantes das religiões hindus, no geral… mas há também cristãos tanto entre tâmeis quanto entre cingaleses. Quando uma lei de 1956 tornou o cingalês o único idioma oficial do país, substituindo o inglês, para a exclusão do tâmil, isso serviu de combustível para sentimentos separatistas, e é disso que surge o LTTE, The Liberation Tigers of Tamil Eelam ou simplesmente os Tigres, um grupo militante e terrorista que desejava criar um estado tâmil - e, como o Maali mesmo diz, disposto a massacrar tâmeis civis e moderados para obter esse objetivo. E o mais absurdo é que o governante responsável por essa lei, Solomon Dias Bandaranaike, acabou assassinado por um monge budista extremista, Talduwe Somarama, por ele não ter sido supremacista o suficiente.
Num lado menos sangrento disso tudo, quem prestar atenção vai reparar que disputa linguística tâmil x cingalês aparece no romance inclusive nos termos de afeto usados pelos personagens, por exemplo. Embora o texto original seja em inglês, o autor deixa vários termos nos idiomas locais (e aí é por isso que a tradução vem com um glossário) para dar aquele colorido, e é interessante observar como um personagem de origem cingalesa se refere a um amigo como seu irmão mais novo, seu maninho ou malli. Um tâmil diz thambi, que tem o mesmo sentido. É o tipo de coisa que não dá para passar por cima na tradução, porque fornece pequenas farpas de significado e serve para identificar a origem de personagens que talvez não seja explicitada pelo narrador.
(O nosso protagonista, por sua vez, é meio cingalês, meio burgher, como dá para ver pelo seu sobrenome; seus amigos Jaki e DD são tâmeis.)
E isso nos leva à segunda metade do título deste texto. Se você frequenta as redes sociais, é possível que já tenha esbarrado no meme de que as Filipinas são o Brasil da Ásia - nossos filiprimos, - porque, pelo visto, muito da cultura acaba sendo inesperadamente parecida. Tem até uma matéria na BBC sobre o assunto (aqui). Eu não sei como é o Sri Lanka de fato, mas em alguns momentos eu tive uma sensação semelhante. O sobrenome português ajuda, mas há algo mais sutil, a meu ver, que talvez sejam as cicatrizes do colonialismo... e o senso de humor cansado, cínico e mórbido que o narrador desenvolve (e tem, pelo menos, uma crítica que eu li em inglês que reclamou de viralatismo). Para ilustrar: em dado momento, nosso protagonista está aprendendo sobre os yakas, espíritos malignos que causam todo tipo de aflição, um deles “espalha boatos e cânceres”, outro “arranca bebês do útero”. Mas depois vemos mais umas outras “criaturas para se temer nesta e em todas as outras histórias” de uma pegada mais mundana:
E aí tem o motorista bêbado de ônibus, o mosquito da dengue, o monge maníaco, o soldado ensandecido, o torturador mascarado, o filho do Ministro. Homens que não são nem do exército, nem da polícia. Homens que se vestem com o traje nacional para trabalhar.
Em algum momento do romance (e agora o clima vai pesar), somos levados para conhecer “O Palácio”, um prédio militar aonde os “desaparecidos” são levados, e cujas salas são equipadas com todo o arranjo que a gente conhece bem das nossas próprias histórias da ditadura: “Mesa de madeira, balde, cordas, vassoura, cano de PVC, arame farpado, uma torneira numa das paredes e uma tomada na outra”. Assim como aconteceu por aqui, os inimigos do Exército são os comunistas (o JVP, grupo de tendência marxista-leninista). Só que há uma diferença de escala. No Sri Lanka, o JVP faz uma tentativa malsucedida de insurgência armada, e a resposta do governo é extremamente violenta, com uma política de extermínio que dura entre os anos de 1987 e 1989, período conhecido como Bheeshanaya, ou “Terror”. Os números de mortos e desaparecidos como resultado disso é qualquer coisa entre os números absurdos de 30 a 60 mil pessoas. Isso sem entrar nas outras tensões e massacres que varrem o país, enquanto a bolha de classe média na capital, Colombo, sequer fica sabendo da dimensão das atrocidades.
O romance enquanto forma literária tem a capacidade admirável de explorar uma vasta gama de tons e sentimentos. As sete luas é, no geral, permeado por um senso de humor cínico, como disse, certamente a única reação possível diante do horror extremo - mas um fenômeno curioso acontece nesse caso, a meu ver. O humor não alivia, nem disfarça ou faz pouco caso, mas ressalta o horror, talvez pelo contraste. Há um motivo, afinal, para o pós-guerra europeu ter desenvolvido o teatro do absurdo beckettiano. E há algumas cenas marcantes que eu não vou comentar aqui, mas acho que vale deixar avisado, momentos em que nada nos poupa do mergulho na crueza desses conflitos sangrentos e desprovidos de sentido. E enquanto leitores, fantasmas ou fotógrafos, a gente só pode observar.
Entre os vivos e os mortos, em sua busca para entender como foi que ele morreu, Maali vai encontrar uma grande variedade de personagens. Ranchagoda e Cassim são a típica dupla policial, meio Sucker & Fucker, que faz eco ao par Balal e Kottu, os capangas responsáveis pela desova de cadáveres. Há uma grande variedade de espíritos, como os fantasmas do defunto ateu, de vítimas de atentados, suicidas (entre amantes, transexuais, soldados infantis), pretas (fantasmas famintos) e até espíritos de animais. O Homem-Corvo é um médium e feiticeiro que atende políticos e mora num buraco coberto de pôsteres de “Jesus, Buda e Osho. Shiva, Ganesh e Sai Baba. Marley, Kali e Bruce Lee. Uma cruz, uma lua crescente, um provérbio tibetano sobre o rosto do Dalai Lama, um koan budista rabiscado em cingalês” (mais um paralelo extremamente brasileiro). Sena Pathirana era um ativista político que foi torturado e assassinado, tornando-se um espírito vingativo - o original descreve o que ele e outros espíritos companheiros se tornam como ghouls3, que eu optei por traduzir como "encostos", porque é um termo que todo brasileiro vai reconhecer. Assim como Maali, ele também tem assuntos mal resolvidos no mundo dos vivos, mas diferente dele, Sena não quer nem saber mais da Luz e está em busca de saciar sua sede de sangue (os encostos têm algum poder de interagir com os vivos), mesmo que, para obter esse poder, seja necessário se alinhar com entidades nefastas do Interstício.
Mas um dos meus personagens favoritos é o demônio guarda-costas que cuida do Ministro da Justiça, uma figura medonha e responsável por comandar grupos de extermínio e torturadores. Ele teria sido o guarda-costas de Bandaranaike em vida e, humilhado por não ter conseguido salvá-lo, acabou se tornando um demônio após a morte e agora protege o Ministro como um anjo da guarda deturpado. Em algum momento, Maali e o demônio, em cima do capô da Mercedes do Ministro, conversam sobre nakath, um tipo de numerologia nativa que cuida de datas e horários auspiciosos. E aí acontece o seguinte diálogo:
— Olha essa sua língua. Você sabe quais países nasceram em 1948?
A Mercedes para no trânsito, mas os ventos sopram em todas as direções.
— Se esta terra é maldita é por causa de homens como Wijeratne e Solomon Dias. E por causa daqueles que protegem essa laia — você grita, encorajado pela distância que cresce entre você e a criatura.
A criatura grita o nome de cinco países. E a Mercedes desaparece com a gárgula no capô.
— Vou ficar de olho em você — ele rosna e não dá mais para vê-lo. Mas os cinco nomes que ele grita ecoam em seus ouvidos. — Burma. Israel. Coreia do Norte. A África do Sul do apartheid. Sri Lanka. Todos nascidos em 1948.
Não importa se Maali Almeida acredita ou não em nakath. Porque parece que o universo, com toda a certeza, acredita.
Tem mais coisas que eu poderia dizer, mas este texto já está bem longo, então vamos parar por aqui, antes que eu abuse da sua boa vontade. Quem quiser ler mais algumas opiniões, saíram textos sobre o romance também no Globo e na Folha. Mas eu sentia que precisava discorrer mais longamente a respeito, porque é muita coisa. Só para oferecer essa breve introdução, já foram mais de 2 mil palavras.
Como eu comecei a escrever aqui este mês e quero que vocês sintam um pouco de saudades de mim, o texto #03 da Mercurius Delirans deverá sair agora só em janeiro. Por isso, desde já, deixo aqui os meus votos de boas festas e feliz ano novo para vocês e tudo o mais. Prometo que vou preparar algo bem bacana para começarmos 2024.
Nesta época de pilantragem descarada de influencer de Bet e jogo do tigre em que a gente vive, acho que é importante frisar que eu, enquanto tradutor, não ganho nada pela venda dos livros que eu traduzo. Por isso, em termos financeiros, se alguém vai comprar ou não o livro por causa do que eu disse aqui, para mim não faz nenhuma diferença. Também não estou escrevendo isso sob incentivo da editora, nem pretendo escrever na newsletter sobre qualquer livro que eu traduzir - apenas aqueles que me despertarem interesse e sobre os quais eu tenha de fato algo a dizer.
Vou explicar isso em nota, porque é meio estranho de encaixar no corpo do texto, mas tem um motivo metafísico. O “você” aqui é claramente o Maali e não o leitor, mas o uso dessa pessoa gramatical gera dois efeitos: o primeiro e mais imediato é essa identificação do leitor com o personagem, na medida em que é levado a viver essas mesmas experiências sendo narradas (“você acorda”, etc), aquela coisa de demorar um segundo para o seu cérebro registrar que você não é ele. O segundo efeito diz respeito ao que a dra. Ranee explica para Maali mais para o final do livro que você não é a sua última encarnação. Ao usar a segunda e não a primeira pessoa, o narrador mantém o foco em Maali, mas gera esse efeito de cisão entre Maali como uma consciência incorpórea e sua identificação como o último corpo que essa consciência habitou. É meio complicado, mas é bom lembrar que, embora o livro não represente um além estrita e ortodoxamente budista, o budismo é uma de suas influências.
O termo ghoul originalmente descreve um espírito maligno específico do mundo árabe, chamado ghul, que entra no léxico inglês pela via de literatura orientalista. A maioria das pessoas hoje eu diria que conhecem o termo por via de filmes de terror ou jogos de D&D, que costumam traduzi-lo como “carniçal”. No contexto do romance, ghouls são espíritos com um pouco mais de poder do que fantasmas normais, capazes de alguma interação com o mundo dos vivos.
Ah, pronto. Fiquei curiosíssima para ler esse livro. Esse recurso do narrador em SEGUNDA pessoa ainda vai virar dissertação de mestrado de alguma pobre-alma nas literaturices por aí. Te vejo nas citações dos lattes alheios, meu caro.
E fiquei decepcionada com a notícia de que só vai ter newsletter de novo em janeiro. Então é você o vilão sobre quem minha mãe avisou?!
Como se minha lista de leitura já não estivesse grande o suficiente, acabei de acrescentar mais um título a ela haha
Feliz ano novo pra você também! Que em 2024 você continue encontrando projetos interessantes feito esse.