Mercurius Delirans #05 – Crônicas do cronicamente online
Memes, monstros primordiais e o vazamento da internet
Suspeito que tudo tenha começado a dar errado quando apareceram os moletons dos memes.
Se você é muito jovem para lembrar ou se essa lembrança foi parar no fundo das fossas abissais da sua memória e agora está sendo puxada de lá como um peixe habituado à pressão extrema que vai explodir na superfície, vamos às explicações: nem sempre se usou o termo “meme” em português com o sentido de fato que a palavra tem segundo o dicionário, “Imagem, informação ou ideia que se espalha rapidamente através da Internet, correspondendo geralmente à reutilização ou alteração humorística ou satírica de uma imagem” (eu gosto muito da ringkomposition dessa definição, que começa e termina com a palavra “imagem”). Não, antes disso, no começo da década de 10, o termo popularmente se referia a uma subcategoria do que hoje chamamos de “meme” – a saber, o que em inglês são os Rage Comics.
Segundo o enciclopédico Know Your Meme, os Rage Comics surgiram pela primeira vez dezesseis anos atrás, em 2008. A primeiríssima tirinha nesse estilo, segundo os arqueólogos, é sobre a sensação desagradável de cagar e a água bater na bunda. Ilustrada no Paint, a imagem conta com quatro vinhetas, das quais as três primeiras acompanham a trajetória da excrescência e a subsequente respingada, culminando com o desenho de um rosto enfurecido, posteriormente chamado de Rageguy, com o texto FFFFFFUUUUUUUU. Outros personagens foram sendo acrescentados ao elenco de personagens-tipo conforme o modelo foi sendo inexaurivelmente aproveitado nos anos que vieram depois.
Há um certo elemento de narrativa popular nesse formato que, para além do sentimento constrangedor do humor datado, torna a coisa toda muito fascinante para mim. Essas tirinhas trabalham com personagens-tipo que são fáceis de reconhecer e de inserir em narrativas de modo satisfatório, seja conduzindo-os a uma conclusão já esperada, seja subvertendo as expectativas e derivando o humor a partir daí (e a natureza formulaica dos personagens-tipo facilita muito esse jogo de expectativas)... ou ainda seguindo numa direção mais absurdista, o que costuma ser o ciclo de vida dos memes de modo geral. A isso se soma a graça da tosquice, já que essas tirinhas eram feitas no Paint, o que também vai na contramão da tendência dos webcomics (um formato bastante popular à época), que é a de melhorar conforme o artista vai pegando o jeito. E assim qualquer um poderia produzir e espalhar os seus próprios Rage Comics anônimos e comicamente malfeitos internet afora.
Agora, o ponto em que a coisa dá uma guinada estranha e que justifica o motivo de eu ter inaugurado este texto com um tom tão apocalíptico é quando a gente lembra onde foi que esse material surgiu. Nada mais, nada menos que o 4chan.
Para quem é cronicamente online como eu e também caiu no caldeirão de suco da internet no começo da adolescência, feito um Obelix sem traquejo social, essa informação não deve ser chocante. Afinal, toda a cultura online brotou do lodo pútrido, porém criativo, de dois sites primordiais, o Something Awful e o 4chan. O SA surge na virada do milênio, criado pelo falecido Richard “Lowtax” Kyanka, com o slogan de The internet makes you stupid (A internet te deixa burro), o que já ilustra a sua postura pessimista e o senso de humor cínico do seu criador, indo na contramão do ciber-otimismo da época. Décadas antes de todos os websites apodrecerem, a internet virar um cercadinho de meia dúzia de corporações e toda essa infestação de nazistas, Lowtax sabia que a internet era podre. Porém, em vez de comprar uma chácara e ir plantar batata, ele decidiu chafurdar nela... e o resultado não foi lá muito legal. Não quero entrar muito no assunto da vida desse homem hilário, terrível e infeliz, mas para quem quiser saber mais, há uma belo epitáfio nesse artigo da Vice. E tem também um artigo mais longo sobre a história do site, que eu recomendo para quem não sabe do que eu estou falando.
A questão é que o SA funcionava (e acho que ainda funciona) com uma página inicial servindo para expor o que há de melhor dentre o que é produzido nos seus fóruns. E muitos fenômenos populares online até hoje se originaram lá. Isso de assistir outras pessoas jogando joguinho, o tal Let’s Play, a mitologia do Slenderman, as animações do shmorky (outra figura... complicada), o dito weird Twitter do dril e outros e uma cacetada de memes são alguns exemplos. Mas aí eis que em 2003 um usuário de nome moot (nome real Christopher Poole) foi expulso do SA, após a proibição de hentai, ao que moot, então com 15 anos, respondeu criando o 4chan. E o resto é história.
É importante deixar claro que eu não estou descrevendo nada disso com tons românticos ou saudosistas. Esses espaços foram, são e provavelmente sempre serão grandes fossas sépticas, e a melhor metáfora que eu tenho para descrever o que aconteceu aqui seria como o nascimento dos monstros caóticos das cosmogonias mesopotâmicas, antes de surgirem os deuses para matá-los. Mas foi isso que moldou boa parte da cultura da internet e por mais que a gente possa argumentar que aqui nos tristes trópicos o nosso modelo era mais próximo daquilo que estava acontecendo no Orkut, não tem como negar a influência da subcultura dos rejeitados norte-americanos. O próprio linguajar de dublagem ruim que se vê por aí deixa isso bem fodendo óbvio (credo).
E aí tem um livro fenomenal do jornalista Dale Beran, que eu acho que vale a pena citar. No capítulo sobre o nascimento do 4chan, ele diz o seguinte:
Outros desses primeiros agregadores de conteúdo, como Slashdot, MetaFilter e Fark tinham métodos de agregamento de autoria independente que empregavam algum tipo de sistema de votos, mas eram limitados à curadoria de conteúdo, aprovação dos moderadores e outras normas. O 4chan, com sua abordagem desleixada e desestruturada, seguia num ritmo mais acelerado do que todos eles.
E aí tinha o conteúdo.
Outra limitação que o 4chan abandonou foi a decência no geral.
Por mais libertino e experimental que fosse o SA, havia um conjunto de normas. E Lowtax não tinha o menor pudor em traçar um limite moral claro no que dizia respeito ao que ele estava disposto a tolerar no site. Na verdade, ele se regozijava em expulsar usuários e conteúdo que ele achasse desprezível.
Já a abordagem de moot era mais frouxa ou, melhor dizendo, a mais frouxa. Ele determinou como normas os limites externos das normas já existentes, o que queria dizer, a lei. Como ele mais tarde viria a dizer, ele estava permitindo que a comunidade do 4chan "se definisse". Mas era algo que apenas um adolescente apático faria, alguém que ainda não determinou seu próprio sistema de valores e que, como a maioria dos adolescentes, estava espelhando, de modo experimental, a cultura ao seu redor, nesse caso, uma cultura de transgressão competitiva. Como Lowtax descreveu para mim, "o 4chan era como uma corrida para ver quem era capaz de ser o maior merda e mais fudido da cabeça possível. E todos eles estavam ganhando".
Já que o conteúdo do SA se via equilibrado no fio da navalha entre odiar as imagens e subculturas asquerosas e se refestelar nelas, o SA acabava constantemente se rasgando em dois, banindo, ostracizando e condenando usuários num ritmo cada vez mais frenético, conforme ia atraindo as partes mais obscuras da internet. Por exemplo, [o subfórum de anime] Anime Death Tentacle Rape Whorehouse, apesar do título irônico, sinalizava para os fãs genuínos de hentai com estupros por tentáculos que esse conteúdo era tolerado lá, mesmo que a intenção original fosse tirar sarro de anime.
A base de usuários inicial do 4chan nasceu de um desses expurgos do ADTRW, batizado pelo SA de “o pedocausto”. Ou, como Lowtax me disse, "Eu estava cansado de ter que tentar descobrir se o desenho sexualizado que alguém havia postado representava uma menina de 11 anos ou UMA BRUXA DE 500 ANOS da série Princesa Sei-lá-que-porra, volume 56".
O 4chan começou como um lugar para moot e seus amigos postarem imagens de anime japonês fora do SA, mas imediatamente entrou numa espiral daquilo que o SA havia sido fundado para tirar sarro: uma coletânea de subcomunidades da internet onde fetichistas ostracizados se reuniram.
Pesado, né. Tente explicar para alguém que não é cronicamente online o conceito de um “pedocausto”. Bem, o livro se chama It Came From Something Awful: How a Toxic Troll Army Accidentally Memed Donald Trump Into Office (ainda sem tradução oficial, viu, editoras) e a proposta é exatamente essa. Embora seja um pouco exagerado creditar a eleição (e agora reeleição) da besta laranja às patacoadas de um bando de gente com cheiro de porra seca, é importantíssimo esse trabalho de registrar a história desses lugares nesse espaço efêmero que é a internet, na medida em que nos fornece uma parte do quebra-cabeça para explicar o absurdo em que a gente vive hoje. Especialmente interessantes são os capítulos sobre a questão do niilismo jovem e os seus limites, a mudança nas tendências políticas do 4chan (marcada pela prisão, pelo FBI, de alguns membros de um Anonymous ainda idealista e até progressista após ataques contra a Mastercard e o Paypal) e as origens do Q-Anon... cujos delírios foram uma forte motivação para a porra do invasão do Capitólio. Sobre essa último questão, aliás, recomendo fortemente o documentário Q: Into the Storm.
E isso nos leva de volta ao moletom dos memes.
Acho que era 2011 ou 2012, certamente antes de 2013, que esses itens da moda apareceram. Demorou alguns anos, mas aconteceu: um artefato cultural nascido no 4chan estava chegando às culturas de massa, direto para as araras das lojas de departamento. E eu tenho quase certeza de que era primeira vez que isso estava acontecendo. Numa época em que a internet era um lugar, quando a gente ligava o computador para entrar na internet, havia essa separação. Não era socialmente aceitável falar por aí do que se via online, até porque, dependendo das profundezas que você mergulhava, isso poderia incluir o close do ânus vermelho e arreganhado de um homem, usado como pegadinha ou punchline para uma piada (tem também um texto na Vice sobre isso. Porque claro que tem).
Ninguém são acharia graça disso, mas o senso de humor é uma coisa misteriosa. Por motivos óbvios, moletons com estampa desse referido homem, conhecido online como goatse, nunca se concretizaram, mas os espaços em que essa imagem circulava era o mesmo de onde vinham as carinhas engraçadas. Imagino que você possa ter tido uma tio ou um primo que usava o moletom dos memes sem ter a menor ideia de onde aquilo veio. O reator número 4 da internet estava vazando – e nós, inocentes habitantes de Prypiat, nem tínhamos ideia.
Coisas legais que eu vi e estou recomendando:
Na minha tentativa de voltar a ler romances, eu tenho encarado Se um viajante numa noite de inverno..., de Italo Calvino. No ano passado, eu finalmente li o Palomar, que é um livro curtinho, mas estava há eras na minha fila de leitura, e agora decidi encarar algo mais substancial. Eu sou da opinião de que esses truques de metaliteratura devem ser usados com parcimônia, porque enjoam demais, mas se você for ler um livro que lança mão desse truque, que seja esse (ou At-swim-two-birds, do Flann O’Brien, que é fenomenal também).
Na nossa última ida ao cinema, a assistimos a Vidas Passadas, dirigido por Celine Song, um filme sobre reencontros após a sua protagonista Nora Sung, ir embora da Coreia e construir sua vida nos EUA. É um filme muito delicado e adulto, no sentido mais contido da palavra. Tem uns momentos de tensão em que você chega a ficar apreensivo com a possibilidade de cair no clichê de filme romântico, mas o fato de que a diretora resiste a essas tentações é, a meu ver, um ponto extremamente positivo.
Como um aperitivo antes de ver o Pobres Criaturas, do Yorgos Lanthimos, que a gente pretende fazer em algum momento nos próximos dias, tem também um filme anterior dele intitulado Dente Canino, que está no MUBI. Conversando com a Maíra (minha esposa, pra quem não sabe) depois de assistir, ela me falou que é um filme que chega a ser filha-da-putice recomendar, por isso estou recomendando. Acho divertido como ele pega um conceito, o de levar as obsessões da família tradicional às últimas consequências e de fato leva às últimas consequências. Porém, como eu não sou muito filho da puta, aqui ó: se você fica desconfortável com cenas de sexo de adultos que se comportam igual crianças, esteja avisado.
ai ui ai parcimônia
Esse lance de como a internet foi ficando uma coisa horrorosa sempre me deixa deprê. Teu post lembra que ela nunca foi lá esse mar de rosas que minha memória tenta fingir que sim.
Ah, eu adoro esse livro do Calvino mas eu curto essa coisa meta-literária