Uma das primeiras coisas que se aprendia na escola ao estudar poesia um pouco mais a sério era o conceito do “eu-lírico”. Falo no passado, porque não sei o que as crianças aprendem hoje… provavelmente a jogar no Tigrinho.

Aí como era: o professor passava um poema no retroprojetor, por exemplo, do Casimiro de Abreu, e a gente precisava ler tendo em mente que, quando ele fala que está com saudades da aurora da sua vida, da sua infância querida, sua privada entupida, não é o Casimiro de carne e osso, a pessoa com CPF, que está falando, mas uma outra coisa, um tipo de construto meio fantasmagórico que só existe na linguagem.
Mas, Adriano - você pode estar pensando - na época do Casimiro não existia CPF. De fato, o registro de Pessoas Físicas foi criado em 1965, mais de 100 anos depois da morte do poeta. Pois, na época dele também não existia eu-lírico.
E eu acho esse fato curiosíssimo, porque existem umas coisas que a gente dá de barato, que acha que sempre estiveram lá, quando são bastante recentes, na verdade. E isso é especialmente marcante no caso de conceitos que são meio contraintuitivos, como é o do eu-lírico. Não vou dizer todo mundo, mas muita gente já passou pelo constrangimento de escrever um poeminha de amor para alguém. Você escreve lá seus versinhos, expressa seus sentimentos usando as imagens mais bregas que você consegue conceber, rima “amor” com “dor” e entrega para a outra pessoa ou, pior ainda, canta aquilo com um violão. Nessa hora não tem eu-lírico aí. Até porque eu-lírico não tem corpo físico e aí não tem como… enfim.
Mas é aquilo, né. Tem aquela frase em inglês que diz que se um homem te escreve um soneto, é porque ele gosta de você. Se ele te escreve 300 sonetos, é porque ele gosta de sonetos. De fato, coitada da pessoa que recebe tudo isso de poema, depois do 3º soneto deve começar a ficar meio chato. Claramente, tem outras coisas em jogo aí.
A um nível amador, diletante, sim, as pessoas vão escrever o poema para entregar como cartinha de amor, elas vão escrever de forma terapêutica, para botar sentimentos para fora. Mas aí tem aquele safado do T. S. Eliot - o responsável, vale lembrar, por existir o filme Cats - que escreveu o ensaio “Tradição e talento individual” e que todo calouro de Letras vai ter que ler em algum momento da sua formação. Basicamente, se alguém te escreve 300 sonetos, não é para te conquistar amorosamente, mas para dialogar com a tradição literária. Você é só o pretexto, mais ou menos como ser modelo do Picasso.
Como eu disse antes na M. D. #21, se alguém quer passar fome virar poeta, vai ter que passar por toda a experiência que eu descrevi a respeito do processo de escrita umas mil vezes, mais ou menos. Quando se escreve tanto assim, mesmo que você esteja partindo de uma experiência real, de um sentimento que houve de fato na sua história pessoal, em algum momento o texto vai inevitavelmente se descolar da memória da experiência, nem que seja só porque precisa acertar a parte formal, e um cabelo preto vai ter que virar louro para rimar com “ouro” ou algo nessa linha. E aí o eu-lírico passa a fazer bastante sentido. O texto ganha uma vida própria, independente do que possa ter acontecido na vida dita real.
Agora, eu falei acima que o eu-lírico é um conceito bastante recente. Recente quanto? Bem, ele tem mais ou menos a mesma idade que a invenção da geladeira doméstica.
Volta e meia eu fico meio obcecado com essas questões de datas1, o momento em que um dado conceito emerge, especialmente quando não é óbvio, quando não aparece, tipo, na Wikipedia, por isso fui atrás. Acabei encontrando aqui um artigo de 2022 da revista Forum of Poetics, intitulado “What Does Your Subject Do? On the Contradictory History of the Lyrical Subject”, escrito por Marta Koronkiewicz (link). E o texto dela começa citando a pesquisadora polonesa Anna Nasiłowska, que identifica a origem do eu-lírico nos círculos de estudos literários alemães de 19102. Da Alemanha, ele cruza a fronteira e vai para a Polônia, onde substitui o conceito da “alma poética”, que estava ficando demodê, por conta das suas conotações mais metafísicas. E aí cai nas graças dos estruturalistas. O formalismo russo também estava indo de vento em popa na época, e tudo se encaixa, porque a ideia dos formalistas, resumidamente, era tratar o poema não como uma forma de expressão de si mesmo, mas como um tipo de máquina, cujas engrenagens e mecanismos podem ser estudados.
Já a geladeira para uso doméstico é inventada em 1913. Assim como a geladeira, o eu-lírico é o resultado, portanto, da modernidade e, como quero demonstrar, também se torna algo indispensável. Digo, não tão indispensável quanto a geladeira, mas, bem, vocês vão ver.
Dez anos atrás, quando eu tinha tempo livre para esse tipo de empreitada, eu me dediquei a preparar uma edição online dos poemas da poeta simbolista/parnasiana Francisca Júlia, uma das figuras mais injustiçadas da nossa literatura - duplamente, por ser mulher3 e escrever inserida numa escola que logo viria a ser desbancada pelos modernistas no combate estético do começo do século.
A obra dela não é muito vasta: a autora publicou dois livros entre 1895 e 1920, Mármores e Esfinges. Os dois volumes estão disponíveis online, digitalizados, pela Biblioteca Brasiliana da USP, mas ela só foi reeditada em papel em 1961 pelo Péricles Eugênio da Silva Ramos, numa edição chamada Poesias, que tinha outros critérios de apresentação e por isso não respeitava a estrutura dos volumes originais. Para resolver isso e concentrar os poemas todos dela de modo acessível num arquivo só, já que também não existia outra publicação oficial, eu publiquei um .pdf no escamandro contendo a transcrição da poesia completa dela, tal como os poemas aparecem, em ordem, nos livros publicados. É, nessa época eu tinha tempo para isso. O post, com o .pdf, está aqui.
Nesse processo, acabou que eu li a edição toda de 1895 de Mármores, que curiosamente conta com o prefácio de um grande nome da época, o crítico e membro da ABL, João Ribeiro (1860-1934). E essa é anedota na qual eu queria chegar nesta edição da newsletter, a carne do nosso sanduíche textual. Atenção para os insights do autor (apresentados aqui na graphia original, para dar um ar mais vintage):
Se eu tivesse de fazer uma analyse psychologica, (de cujo horror os leitores se livrariam a tempo) diria que a sensação predominante na compleição physica e intellectual de Francisca Julia é a sensação auditiva; ella sabe tirar dos ruidos cahoticos e irregulares da natureza as vibrações isochronas e musicaes, e dá-lhes um relevo distinctivo, como um artista sabe, com o pincel, desdenhando o detalhe, distinguir as manchas do colorido geral da paizagem.
Um subsidio para essa affirmativa psychologica, bem pôde ser a myopia da gentil poetisa. Á deficiência da vista, procurou equilibrio no ouvido, com a vantagem innegavel de que a myopia natural, quando não é excessiva, é um bom elemento de educação da percepção visual na arte, por isso que facilita a visão das massas e supprime o incommodo das minúcias.
Eu preciso respirar um pouco toda vez que eu releio esses parágrafos. MIOPIA. Diante dos poemas do que foi um grande nome da poesia da época, João Ribeiro conclui que a qualidade das imagens poéticas que ela apresenta se dá por ter dificuldade de enxergar de longe. Assim ela “desdenha o detalhe”, apresentando apenas as “manchas do colorido geral da paisagem” e se concentrando mais na “sensação auditiva”. Van Gogh tinha morrido fazia cinco anos quando Mármores é publicado, e eu me pergunto o que João Ribeiro diria de suas pinturas. Talvez atribuísse A Noite Estrelada a um possível astigmatismo.
Tem umas coisas esquecidas em que a gente esbarra às vezes por acaso, mas são tão maravilhosas que a gente acaba guardando para sempre, e este é um desses casos. Eu estou tirando sarro, porque sim, essa é uma crítica ridícula, aos nossos olhos, e é engraçado pensar que partiu de um imortal da ABL. Só que, claro, ele não tinha a presciência de imaginar a guinada na teoria literária que viria dali a uns anos, desbancando a crítica de teor psicologizante4 e transformando esse tipo de comentário em piada.
Então, da próxima vez que alguém pensar que o eu-lírico é um conceito meio besta, um preciosismo, que não faz sentido separar a pessoa portadora de CPF daquela voz que se vê no poema (até porque muitas vezes de fato aquelas duas pessoas são a mesma pessoa), eu acho que é legal lembrar do caso do comentário crítico de João Ribeiro à poesia da Francisca Júlia, já que esse é precisamente o tipo de conclusão a que esse tipo de conceito nos impede de chegar. Mas acho bom também para pensar em como certas coisas que a gente considera como algo que sempre esteve lá são, na verdade, muito recentes.
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No momento, minha obsessão atual é com o uso da nota de rodapé como recurso literário. Não foi David Foster Wallace, nem Mark Z. Danielewski quem inventou isso, obviamente, mas procurar qual teria sido o primeiro caso tem me dado dor de cabeça.
Caso alguém encontre algum texto em português falando em termos de um “eu-lírico” anterior a 1910, por favor me mostre!
No outro texto que eu publiquei no escamandro sobre a F. Júlia, tem alguns exemplos de como ela foi recebida pela patota literária da época. Severiano de Rezende falou que era melhor ela se ocupar com trabalhos de agulha, Artur de Azevedo não acreditou que esses versos “saíssem de mãos femininas” e o próprio João Ribeiro achou a princípio que ela fosse uma poetisa imaginária inventada por Raimundo Correia.
E eu nem vou falar nada do tipo de crítica que atribui transtornos da cabeça para os autores com base no que eles escrevem, frequentemente com uma atitude meio clutching my pearls. É o tipo de coisa que é muito popular em tempos de Booktok e jovens conservadores.
Ótimo e interessantíssimo texto! (ri ao ler "se um homem te escreve um soneto, é porque ele gosta de você. Se ele te escreve 300 sonetos, é porque ele gosta de sonetos" kk)