Mercurius Delirans #04 – Um trecho do Momo Rei
Perdoem a egotrip, mas se eu não fizer minha autopromoção, quem vai fazer, não é mesmo?
Ano passado eu finalmente publiquei o meu terceiro livro, Momo Rei.
Sempre que penso na minha trajetória enquanto... eu hesito em falar “poeta”, porque essa é uma palavra esquisita para autodescrição. Enquanto pessoa em situação de poesia, eu acho o meu caminho meio engraçado, porque, como já me apontaram, nenhum dos meus livros tem nada a ver um com o outro em termos de estilo. Não foi de propósito, mas se perguntarem eu vou dizer que é, para parecer vanguardista.
Eu comecei a escrever “a sério” por volta de 2010, 2011, depois de vários falsos começos e muita coisa adolescente jogada fora, toda aquela crise de estudante de Letras e tal. Foi a época, inclusive, em que a gente montou o escamandro, o nosso coletivo de poesia e tradução que começou, antes de ser um site e uma revista, com reuniões semanais em cafés e bares nos arredores da reitoria da UFPR, em que a gente levava os nossos poemas para os nossos colegas criticarem sem dó – devo falar disso mais longamente em algum momento futuro, talvez, porque é método que rendeu demais.
Foi um período muito bom e muito produtivo. Ao término de um ano particularmente intenso, em que eu escrevi bastante coisa e joguei mais coisa ainda fora, deu para encontrar algo como a “minha voz” e o meu livro de estreia saiu disso, o Lira de Lixo, que foi publicado em 2013 pela editora Patuá. Hoje ele está esgotado e fora de catálogo, e eu inclusive já flagrei um exemplar saindo por mais de 100 reais na famigerada Estante Virtual (na época eu vendi por 30, veja só)1... mas quem tiver coragem pode baixar o .pdf aqui neste link do mediafire. Apesar de eu não me identificar mais com muita coisa aí (o livro saiu há mais de 10 anos, afinal), ainda tem uns poemas de que eu não me envergonho.
Só que também teve uns poemas dessa época que não entraram no Lira, por terem um tom menos corrosivo. A voz era a mesma, o lirismo torto idem, mas não encaixavam lá e apontavam para um segundo livro... que acabou não saindo até agora. Eu tinha um esboço desse então segundo livro meio pronto em 2015, mas só fui passar a régua e ficar satisfeito mesmo com ele no ano passado. Aí eis que o era para ser o segundo livro, se tudo der certo, vai virar o meu quarto. Nesse ínterim, terminei e publiquei o PARSONA, um título esquisito que é um anagrama de “parnaso”, porque foi construído em cima de operações de erasure e outras manipulações textuais do ciclo de sonetos “Via Láctea”, de Olavo Bilac. Ele saiu pela Kotter, em colaboração com a Ateliê, em 2017. Foi um sucesso estrondoso, como vocês podem imaginar.
E isso nos leva ao Momo Rei. Fuçando aqui nos meus e-mails, os primeiros planos que eu fiz para esse livro datam de 2012, antes ainda de publicar o Lira, quando mandei um projeto para um edital de bolsa de criação literária da FUNARTE & Biblioteca Nacional para autores estreantes. O valor que eles estavam oferecendo, de 15 mil reais, era pouco menos do que o que eu recebia em um ano de bolsa de mestrado e teria me possibilitado passar um 2013 muito mais confortável, que eu poderia ter usado para me dedicar a escrever, porém... alas, não era para ser! Muita ingenuidade minha achar que eu ia ganhar alguma coisa com um texto de proposta que citava, entre outras coisas, “O Poema Sujo” do Gullar. Sim, aqueles versos. Olhando em retrospecto, é meio bizarro como parece que a maioria dos projetos selecionados não deu em nada. Quando eu jogo os nomes no Google, são pouquíssimos os que retornam qualquer resultado. Claramente foi um dinheiro muito bem gasto da parte da BN.
Perdão pela quebra de decoro, juro que não estou mais amargurado por conta disso! Em parte foi bom, porque deu para amadurecer. Enfim, depois de todos os trâmites da publicação do Lira entre 2012 e 2013, além da conclusão do meu mestrado e a publicação do meu Shelley2, eu fui de fato começar a escrever o Momo Rei só em 2015... e terminei perto da virada do ano novo de 2022 para 23. Sete anos escrevendo, ou algo assim. Na verdade, após esboçar 1/3 do livro entre 2015 e 2016, teve uma boa parte desse período em que eu não escrevi nada, apenas repensei a narrativa e a estrutura enquanto sofria com o doutorado. Mas o livro finalmente saiu, de novo pela Kotter, e eu fiquei satisfeito pra cacete. Claramente, ficou muito melhor do que se tivesse sido escrito pela criatura verde que eu era em 2013... só que tem mais coisa ainda aí. Tem o trabalho dos diagramadores (o Caio Borges e a Victoria “Noia”) que ficou impecável, a capa da Jussara Salazar que capturou perfeitamente o espírito do livro, a orelha lindamente eloquente do André Capilé, e até as fotos para a orelha e divulgação (para as quais eu adquiri, num brechó de São Paulo, o belíssimo modelito que vocês enxergam na foto de perfil aqui da newsletter), tiradas pela Giovanna Silveira – tudo isso contribuiu, a meu ver, para criar um livro apropriadamente momesco.
Momo Rei é um poema sobre o deus do ridículo, Momo, na mitologia grega. Embora fosse a princípio um deus menor e que foi expulso do Olimpo por encher demais o saco, para qualquer um que olhe para o estado do mundo hoje fica difícil não imaginar que não seja ele a principal divindade cosmocrática, e o poema se dedica a tratar dessa questão, da queda e ascensão apoteótica de Momo.
O trecho que eu vou compartilhar com vocês nesta edição da newsletter é um dos meus favoritos, do canto VI. Nele, Momo está fugindo de deuses atmosféricos, após se indispor com Zeus e descobrir que isso fez dele persona non grata com todas as deidades que manejam o trovão em outros panteões. Seguindo em fuga, ele sai da Grécia, passa pela Escandinávia, Espanha e chega às Américas. O resto eu vou deixar o meu narrador contar:
correndo mais ao sul outro deus o aguarda agora Tupã e Momo encontra o país ainda bem diferente era o tempo em que os animais falavam e a onça ainda detinha o fogo tudo logo mudaria mas Pindorama ainda não mas em breve país da piada pronta manteria a tradição por muito tempo às margens do Amazonas Momo crê ter voltado ao Oceano e encontrando uma sucuri logo bola um plano para atravessar as águas ele acende outro cigarro o que lhe chama atenção te dou um maço desses se você me levar em sua boca até o outro lado deste rio opa é agora responde a sucuri que a cobra vai fumar (de novo este é um conto etiológico) e feito o acordo a dupla partiu por água abaixo num trecho do rio a água agitada e barulhenta movia os pedregulhos lembrando os famosos Cila Caríbde e Rochedos Errantes e Momo perguntou como isso se chamava aqui pararaca disse a sucuri mais adiante um grupo de anfíbios lembrava sapos de pernas finas e Momo perguntou como isso se chamava aqui perereca disse a sucuri mais adiante num trecho havia muitas cachoeiras e Momo perguntou como isso se chamava aqui piririca disse a sucuri e mais adiante ainda à margem um povoado indígena fazia torresmo de porco-do-mato e Momo perguntou como isso se chamava aqui pururuca disse a sucuri por fim chegava a dupla ao violento encontro do rio com o mar e Momo antes de perguntar como isso se chamava concluiu: isso é a pororoca né e a sucuri sorriu e mais uma vez é hora de abrirmos nosso dissionário hetimomológico a fim de nos libertarmos do fardo da ignorância e das ideias de jerico consta entre os sábios mundo afora os doutos Ramos, Bernardo da Silva & Chovenágua, Ludovico além daquele que incorpora o anjo Momoroni e funda a religião dos Momórmons teria a américa recebido a visita barafunda dos povos fenícios famosos navegadores trazendo consigo seu idioma e é assim que funciona: sua base são séries de consoantes as raízes semíticas já com algum sentido ao qual se soma o alento das vogais feito o sopro divino ao humano barro a criação como nos rituais egípcios à base do escarro e consta entre os doutores a sequência pê erre erre tem a ver com esfarelar daí em hebraico o verbo parar (פָּרַר) com esse sentido por isso variando as vogais variam-se as palavras A negro E branco (está escrito) I rubro U verde O azul a força da pararaca e pororoca e piririca esfarela os barcos enquanto a pururuca esfarela na boca e a perereca bem a perereca ninguém explica vocês também hão de reparar que as cores estão trocadas o E é branco mas a perereca é verde e a pororoca é escura não azul a isso também elucida este velho alfarrábio: é porque as coisas funcionam diferente aqui no hemisfério sul ah como é bom contar com a erudição dos sábios! mas agora chega enfim conta a lenda que um peixe vira Momo dentro da sucuri no que ela deslizava pelas águas e vendo-o aninhado lá teve o peixe uma ideia pois todos os outros peixes tinham um diferencial um jenesequá e ele ainda muito miúdo não tinha nenhum e no entanto eu me sinto ele pensava destinado à fama tal a origem do candiru pavoroso peixe que penetra o pinto
Para quem gostou e quer ler mais, em 2021 o Capilé publicou o canto I do Momo no escamandro, num post dose-dupla junto com poemas do talentoso Lucas Litrento, autor de PRETOVÍRGULA (Círculo de Poemas), clicando aqui. O livro pode ser adquirido no site da Kotter mesmo ou em outras livrarias de respeito… e também no site do careca filho da puta.
No mais, recomendo que vocês fiquem de olho ainda no Instagram do Felipe Hirsch, dos Ultralíricos. Eu trabalhei com eles uns anos atrás como assistente, ajudando a reunir material para o espetáculo Língua Brasileira, com o Tom Zé. E agora ele está preparando um novo espetáculo, para março deste ano, intitulado MOMO. Pois é. Pois é. Sim, é a minha cara ali (uns bons 10 anos mais jovem na foto) no post da equipe de criação. E, sim, eu gritei bastante quando caiu a ficha que toda essa gente de peso está lendo o meu livrinho.
Mais umas coisas legais em que eu trabalhei e estão vindo à tona agora:
Eu ganho a vida como tradutor, né, o que significa que eu pego muita coisa em sequência para traduzir (eu devo ter trabalhado em uns 7 livros só em 2023). E aconteceu que agora, no começo de 2024, tem um monte de coisas em pré-venda que talvez possam ser interessantes para vocês:
A fúria, de Alex Michaelides, para a ed. Record. É o terceiro livro do autor do best-seller A paciente silenciosa, trazendo mais um thriller psicológico, agora ambientado numa ilha grega e com alusões a tragédias clássicas.
Teerã noir, coletânea de contos organizada por Salar Abdoh, saindo pela editora Tabla. São várias histórias de autores iranianos ambientadas no Irã. Mas, para além desse aspecto de curiosidade por um país com o qual a gente não costuma ter muito contato, o nível dos contos é também muito alto e vários deles oferecem narrativas dolorosas e impactantes sobre embates de gerações, choque cultural e violência urbana.
O ansiadíssimo Casa de Folhas, de Mark Z. Danielewski, saindo pela Darkside. Quem tem alguma familiaridade com o original, consegue imaginar a dor de cabeça que foi traduzir e diagramar este monstro, e eu ainda nem consigo acreditar que ele vai sair. Imagino que logo mais vai aparecer uns fãs me xingando (já tem gente demonstrando ceticismo no tuíter… e, bem, faz parte, né), mas estou tranquilo, a idade me deu uma casca um pouco mais grossa, eu acho.
Ufa! Esta edição da Mercurius Delirans saiu meio umbigocêntrica, mas espero que as trívias dos bastidores tenham, pelo menos, servido para entreter um pouco. As próximas edições, eu prometo que serão menos narcisistas.
E piora! A primeira edição da revista impressa da escamandro está pela bagatela de 289 reais, aqui.
Entre a monografia da graduação e o mestrado, eu trabalhei traduzindo o poema Prometheus Unbound, de Shelley, e uma seleta de outros poemas menores. O resultado disso foi o volume Prometeu Desacorrentado e outros poemas, que saiu pela Autêntica em 2015.