Mercurius Delirans #09 – escamandro: the early years (in memoriam)
Ou: podíamos ter montado uma banda, mas formamos um coletivo de poesia
Lamento, hoje vamos ter um post longo sobre poesia. Bom avisar desde já.
Na segunda que vem, dia 29, vai fazer dois anos do fim de uma das coisas mais legais de que eu já participei, que foi o escamandro.
Para quem não conhece, o escamandro foi um coletivo de poesia, tradução poética e crítica literária, ativo entre 2011 e 2022. Nossas centenas de posts (não sei se chegou a mil, mas não duvido), ainda estão online e dá para acessar no link escamandro.wordpress.com. Como homenagem aos quase 11 anos desse projeto, do qual eu participei durante metade da sua existência, eu gostaria de dedicar a edição de hoje da Mercurius Delirans para falar um pouco dessa experiência.
“Você gosta de poesia?”
Tudo começou — barulhos de harpa enquanto a tela vai ondulando para mostrar o flashback — em meados de 2009. Nessa época, o Vinicius “Vina” Barth e eu, ainda dois jovens mancebos, estávamos concluindo a graduação em Letras. O Vina é poeta, tradutor, ilustrador e músico, sua dissertação foi uma tradução do canto I das Argonáuticas de Apolônio de Rodes, direto do grego. Já eu preparava um projeto de tradução do Prometheus Unbond, de Shelley. A gente se encontrava direto, porque havíamos os dois deixado a matéria de Literatura Brasileira II para o final da graduação, no período noturno, e também fazíamos umas optativas juntos. Nisso, acabou que a gente trocava muitas figurinhas sobre poesia e tradução, ao vivo e por e-mail.
Aí eis que apareceu o Guilherme Gontijo Flores na UFPR, recém-chegado de Belo Horizonte, em tempo para ser a banca da minha monografia e eu matar umas últimas horas de optativas que faltavam para me formar. Ele é uma figura muito curiosa, porque ali éramos todos curitibanos, mas ele é alguém que nasceu em Brasília, fez a graduação em Vitória, na UFES, e o mestrado na UFMG. Falavam muito do Gontijo nos corredores, professor de Clássicas, jovem e dotado de um conhecimento absurdo de poesia nacional e internacional. Colocando nesses termos, estou ciente de que parece que estou descrevendo o começo do plot de uma fanfic homoerótica. Lamento decepcionar, a realidade não foi tão emocionante assim, mas se alguém quiser escrever essa fanfic... bem, eu não posso impedir, né?
Foi um momento propício para a gente, porque estávamos todos num estágio embrionário em termos de escrever poesia. Eu, do alto dos meus 21 anos, tentava achar uma voz própria, ainda muito preso a uma obsessão com formas fixas e um dandismo anacrônico. Eu e o Vina tínhamos uma coisa com o século XIX e começo do modernismo, e muito do que eu escrevia ainda tinha aquela carinha juvenil de pastiche de Baudelaire que denunciava um passado trevoso.
Da minha parte, todos os poemas dessa época foram destruídos. No paradigma atual da poesia (como os classicistas sabem, nem sempre foi assim, bom frisar), você ser um poeta e escrever com a voz de Baudelaire ou Drummond ou qualquer outra pessoa é, sim, parte do processo de amadurecimento, mas é uma etapa que precisa ser superada, caso contrário corre-se o risco de se ver eternamente à sombra desses nomes.
Ah, nossa, aí é o fim do mundo, né? Bem, óbvio, existem problemas maiores para a gente se preocupar (apesar que essa era a época em que o Tiririca prometia para nós, enganosamente, que pior do que tá, não fica, esse filho da puta). Mas essa é a grande barreira para você sair da mesa das crianças no meio da poesia. E eu falo por experiência que é uma posição bastante desconfortável você estar ciente disso, de que precisa comer muito arroz com feijão ainda até ter a força necessária para romper com essa subjugação… e tentar e tentar sem sucesso.
Já o Gontijo estava num lugar um pouco mais confortável. Ele tinha bastante material na gaveta, mas pelo que eu lembro tinha também uma coisa de ter escrito e parado. Eram poemas de uma qualidade superior ao que eu fazia, pelo menos, e com algo mais próximo de uma voz própria, apesar de que eu suspeito que boa parte deles acabou tendo o mesmo destino. Talvez haja alguns perdidos no meu e-mail para publicarmos no futuro e tirarmos dinheiro dessas obras inéditas, assim que ele virar um nome famoso.
E foi assim que a gente começou a se juntar para falar de poesia. O negócio (e voltaremos para isso depois) foi que o Gontijo trouxe uma contribuição importantíssima para a mesa: uma política de honestidade brutal. A ideia não era a gente se reunir para ficar se punhetando (ah lá a fanfic de novo), mas de fato usar essa interação para crescer. E isso na base da porrada. A lógica era a de que se a gente ficar só se elogiando, então nada vai melhorar, você fica apenas inflando o próprio ego e se achando O Gênio da poesia. Quando você leva porrada, aí você tem a possibilidade de entender o que está fazendo errado.
Escrever é uma experiência muito esquizoide, né? Especialmente poesia. Uma parte desse trabalho é radicalmente íntima, a coisa de encontrar a própria voz individual, de produzir algo autêntico, que só você poderia ter feito, toda a resistência contra um discurso massificado, etc, etc. Mas a gente nunca consegue apagar 100% a figura do outro: alguém, que não seja você, vai ler. E se ninguém for ler, você vai publicar pra quê? Tem algo de muito bom em ser lido, para além da coisa egoica. É uma sensação catártica saber que aquilo que você criou entrou em ressonância com outras pessoas e pode inclusive inspirar outras criações, de modo que você vira ali um elo numa cadeia artística que liga passado e futuro. É uma forma de conexão. Não digo que seja a melhor forma de conexão que existe (não é um substituto para o toque de outro ser humano), mas certamente é válida.
A questão é que, do modo como eu entendo, quanto antes rolar de você ter alguém que não seja você mesmo para ler o que você escreve (ou então que não seja a sua mãe, que vai ler e dizer “que lindo”), melhor vai ser para o seu amadurecimento. Inclusive como pessoa, para parar de achar que uma crítica ao poema que você fez é sempre um ataque pessoal.
O fato é que esse contato acabou sendo extremamente produtivo para nós. Lembro de uma das primeiras reuniões, que foi no bar do lado da reitoria. Eu tinha levado um poema enorme, de umas duas páginas, em redondilha maior, e o Gontijo cortou 90% dele, restando apenas uma meia dúzia de versos que prestavam. No fim, acabei jogando o poema inteiro fora, mas a experiência me marcou, porque, de fato, olhando por uma perspectiva que não seja a de sommelier-de-seus-próprios-peidos, esse ato fazia todo o sentido. Aqueles eram mesmo os melhores versos do poema, e o resto era encheção de linguiça, mas sem uma visão externa que fosse radicalmente honesta, que não tivesse interesse em me adular, era capaz que eu nunca enxergasse isso.
A grande inspiração aqui foi a interação entre os modernistas T. S. Eliot e Ezra Pound. Pound era muito radical em… bem, muitas coisas, inclusive no que não devia, mas o que eu ia falar aqui era de sua postura a favor de se cortar coisas, e antes de o famoso poema The Waste Land ser o que ele acabou sendo, Eliot mandou para o seu amiguinho um primeiro esboço muito mais longo e caudaloso, que Pound retalhou sem piedade. Dá para achar online esses comentários e eles são BRUTAIS. Ele não poupa o amigo, páginas inteiras, incluindo a primeira página original da seção “The Burial of the Dead”, são cortadas... e o pior é que funciona. Num mundo mais feliz, poderíamos lembrar de Pound por causa desse tipo de coisa e não… enfim, vocês sabem.
Voltemos a 2010: logo depois apareceu o Bernardo Lins Brandão. O Bernardo é mineiro e, assim como o Gontijo, é professor da UFPR, também da área de clássicas. Cheguei a fazer uma optativa com ele ainda antes de ir para a pós, sobre o Banquete, de Platão, e tem algumas de suas aulas online no seu canal no YouTube, que eu recomendo vocês conferirem. Diferente da gente, o Bernardo não tinha uma carga prévia de produções anteriores para jogar fora, mas começou a escrever a partir dos nossos encontros. Claro que ele já lia muita coisa (suas principais influências são Rumi, Celan e Ungaretti), só que eu mesmo acho interessante é como esse contato, baseado em cortes (!) acabou estimulando alguém de fora a produzir também. É realmente aquilo, meio paradoxal, do cortar para crescer mais forte. E seus poemas eram muito bons.
Teve uma época em que a gente se encontrava praticamente todas as semanas, no intervalo entre aulas (algumas vezes aconteceu no bar, como eu falei, mas era muita esculhambação e acabamos preferindo fazer isso nos cafés ao redor da reitoria). No processo, cada um foi encontrando a sua voz. Como os encontros eram frequentes, a gente podia experimentar, testar técnicas novas e ver o que dava certo ou não, e o porquê disso. No mais, esse contato com a obra alheia, por sua vez, inspirava a gente a continuar produzindo, até porque muitas vezes um poema que deu certo ou não pode servir de mote para outro poema.
Foi assim que o Gontijo enveredou, a princípio, pela coisa de uma lírica do cotidiano (depois ele foi explorar outros caminhos nos seus livros seguintes), e eu me encontrei na trasheira e no humor duvidoso, ao passo que o Vina era o mais camaleônico e fanfarrão entre nós, e o Bernardo, o nosso místico de plantão. Nesse ritmo, demorou apenas um ano até todos os quatro terem material suficiente para um livro próprio. Entre 2011 e 2012 eu produzi o meu Lira de Lixo; o Guilherme, o Brasa Enganosa; o Bernardo, o Rua Musas; e o Vina, o seu Molho Vinagrete. O Lira, o Brasa e o Rua Musas saíram em 2013 pela Patuá, quando a editora ainda estava dando seus primeiros passos e nem existia ainda a Livraria Patuscada. O livro do Vina demorou um pouco mais, até porque é ilustrado, e saiu em 2020 pela Kotter, que também publicou outros livros meus e do Gontijo.
Criando um blogue
Agora vocês vão reparar que eu ainda não mencionei o nome “escamandro”. Pois bem, em algum momento a gente decidiu começar a dar a cara a tapa. Todo mundo ali tinha já um tanto de poemas na gaveta, que a gente foi tentando mandar para revistas diversas, e todo mundo traduzia, por isso era hora de ter um lugar para expor esse material. Ainda se escrevia blogues nessa época (apesar que já era um período meio crepuscular para o formato), e optamos pelo Wordpress.
O nome “escamandro” foi escolhido em parte pela sonoridade, em parte pela referência clássica, que também era meio que uma piada interna para nós: em dado momento da Ilíada, Aquiles mata tanta gente que ele entope o rio com cadáveres, e aí o rio, que também é uma divindade, se enfurece e os dois começam uma trocação sincera. A gente falava muito de filmes de ação e pornochanchada dos anos 80 (foi numa dessas reuniões que eu fiquei sabendo da existência do filme do Papaco), e a cena da Ilíada, sob essa ótica, virava algo cômico pelo exagero — no mais, daria para traçar um paralelo entre os cadáveres e os poemas que morreram nas reuniões. O rio em questão tinha dois nomes: Xanto era o seu nome divino, e Escamandro o nome humano. Partindo do pressuposto de que o que nos interessa era o humano, fomos de escamandro (com “e” minúsculo, porque é mais descolado).

Tínhamos o nome do blogue, os quatro perfis para login, um about já bonitinho: assim lançamos o nosso primeiro post em 14 de setembro de 2011. E aí dá-lhe postarmos nossos poemas e traduções. Fizemos uma página no Facebook, numa época em que essa plataforma não estava completamente podre (morra engasgado no algoritmo, Zuckerberg), e outro no tuíter para tentar divulgar os posts. No começo, claro, as visualizações eram minguadas. Quatro desconhecidos de Curitiba, falando logo de poesia, quem ia querer ler?
Nosso primeiro post que fez mais sucesso e passou dos dois dígitos em termos de visualização foi a entrevista que o Gontijo fez com o Ricardo Domeneck em novembro. Dentre os poemas mais autorais, os do Vina eu lembro que também faziam sucesso. E aí depois eu fiz um post com umas traduções de Whitman em 2012 que, inesperadamente, acabou virando o nosso post mais lido de todos. É bom que na época eu era jovem e cheio de húbris. Hoje, mais velho e cauteloso, diante desse tipo de repercussão provavelmente teria ficado intimidado. Foi um começo lento, mas em 2012 tudo estava começando a engrenar.
Uma coisa de que eu gostava muito no escamandro era que a gente tinha uma abordagem, digamos, pluralista quando o assunto era tradução. O Gontijo dá a letra num post de 2012 com um monte de traduções para o poema “The Red Wheelbarrow”, de William Carlos Williams, com a ideia de cada tradução ser como uma foto 2D de uma estátua 3D. É um poema pequeno e relativamente simples, mas possibilita inúmeras abordagens e cada uma das diferentes posturas diante dele resulta numa tradução diferente. Em vez de a gente pensar em qual é A Tradução Definitiva para um dado poema, entendíamos que é mais interessante pensar que “quanto mais, melhor”. Tem também um post nessa linha sobre a Ode I.11 (a do carpe diem), poemas do Blake, Yeats, etc. É o tipo de coisa que a gente estuda em teoria no bacharelado em tradução, mas é fascinante observar na prática e participar disso.
Então, em 2013, como dito, nossos livros saíram e, em 2014, publicamos a nossa primeira edição em papel, também via Patuá. A escamandro havia oficialmente virado uma revista literária!
Éramos apenas quatro anônimos que se reuniam para massacrar os poemas uns dos outros, viramos um blogue e enfim viramos uma revista. O lançamento em Curitiba foi no Bar do Dante em 4 de abril daquele ano, e foi muito bacana (até apareceram pessoas para prestigiar o evento!)… exceto pela parte em que eu lasquei um dente comendo pão com bife.
Imaginei que vocês apreciariam esse detalhe bocó. É o tipo de coisa que traz a gente, do abstrato, para a materialidade do evento.
A escamandro #2 impressa saiu em 2016. Nessas duas edições, nós tentamos seguir um padrão. Em cada edição, há uma capa feita por algum poeta que também tenha um trabalho visual e um dossiê destacando um poeta brasileiro não muito conhecido (Sérgio Blank na #1, Ismael Nery na #2), com um textinho introdutório junto de uma seleta de seus poemas. No fim da revista, vem um ensaio (do Rodrigo Tadeu na #1 sobre comédia latina, e da Marjorie Perloff na #2, sobre a poesia de John Ashbery). No mais, o grosso da revista é composto por contribuições inéditas de poetas e tradutores convidados, geralmente traduzindo poesia contemporânea de quem está vivo (que aí as pessoas podem autorizar a publicação) ou de quem está muito morto (i.e. em domínio público).
E as coisas foram só crescendo. Eu lembro de ter uma época em que recebíamos cerca de mil visualizações por dia, o que, para um blogue de POESIA (bom lembrar), é muito. Óbvio que não era nada assim óóó, que famosos, mas é doido e vertiginoso se ver no meio disso. Quando começamos, não é nenhum segredo que uma de nossas principais inspirações foi a modo de usar & co., que também se encerrou uns tempos atrás, em 2017 (hoje o Domeneck toca a Peixe-Boi). Nessa época, às vezes as pessoas citavam a gente junto com eles como as principais publicações de poesia do país, e isso para mim foi emocionante. Assim, passamos a receber mais convidados, as pessoas queriam publicar seus poemas, traduções e ensaios no site, e nesse processo conhecemos muitas pessoas muito talentosas. Cito, por exemplo, o Matheus “Mavericco”, que toca o blogue formas fixas e que contribuiu com algumas postagens valiosas para o escamandro.
O escamandro atinge a maturidade
Infelizmente, 2017 foi um ano difícil para mim. Não sei se eu descreveria como um caso de depressão, burnout ou o quê, mas foi bem ruim. Eu estava à beira dos 30, no doutorado (o que já é uma desgraça por si só), ruim de grana e de saúde mental. Era uma crise em todos os níveis e eu meio que não botava mais fé no que eu estava fazendo. Não tinha mais tempo ou energia para dedicar ao escamandro ou às pessoas que vinham me mandar mensagem pedindo para que eu lesse os poemas delas ou publicasse suas traduções. Ler poesia é difícil, é trabalhoso, e chegou uma hora que eu já nem sabia mais dizer se um poema prestava ou não.
Teve um ou outro sujeito, por exemplo, que ficou de mal comigo porque eu não quis ler as coisas dele. Teve gente que mandou poemas e depois pediu desculpas porque se arrependeu — estava cheirado na hora, ou seja, “quando o ego está esfregando a rola na nuvem”. Não li os poemas, mas duvido que fossem inesquecíveis como essa formulação. Tocar esse tipo de coletivo é um eterno lidar com os doidos do “você gosta de poesia?”. Eu dou risada agora, mas na época foi demais para mim e eu tive que pedir para sair. O Vina já tinha saído também um tempo antes e foi tocar a sua revista própria, a R. Nott, que ainda está na ativa e trata de literatura e arte, mas também de moda e outras coisas.
No fim, porém, acho que as alterações da formação foram positivas. Teria sido cômodo se o blogue fosse para sempre só nós 4 da formação original... mas vocês também devem ter reparado que, se acusassem a gente de uma séria falta de diversidade, não teria como a gente se defender, né? Acho que é necessário e honesto fazer esse tipo de autocrítica. Quando a coisa começou, éramos apenas quatro amigos, de um mesmo meio, com um interesse em comum, mas o escamandro ganhou uma proporção bastante considerável com os anos, e virou algo maior e mais ambicioso e influente. Assim entraram outros membros depois: o Sérgio Maciel, a Nina Rizzi, o André Capilé, a Patrícia Lino — todo mundo muito talentoso. E a presença dessas vozes foi importantíssima para renovar o escamandro e elevá-lo a um outro patamar, que eu não acho que a gente tinha alcançado ainda enquanto eu era membro. Sério, gente, se vocês olharem as postagens dos últimos anos, é só coisa fina. Não tem nada que você veja e pense “olha eles enchendo linguiça aqui só para ter o que postar”.
Não tenho como registrar aqui o que aconteceu após eu sair, até porque eu mesmo desapareci da cena (o Gontijo sempre diz que eu vim para São Paulo para sumir na multidão) e fui acompanhando as postagens apenas como leitor. Essa segunda metade da história, pós-2017, talvez alguém dentre os outros membros possa contar depois. E aí, como eu falei, em abril de 22 (engraçado que o escamandro nasce numa primavera e morre num outono), o Gontijo publicou o último poema-postagem no blogue, encerrando esses quase 11 anos de atividade. Tem muitos posts para os quais eu ainda olho com carinho e talvez eu fale disso de novo futuramente.
Nunca escrevi antes sobre isso, porque precisava deixar amadurecer os meus sentimentos em relação a essa experiência e porque nunca tive o espaço para isso. Porém, mais do que ficar relembrando os tempos bons que não voltam mais (OK, tem um pouco desse elemento nostálgico), o que eu queria aqui era frisar o poder do método do escamandro.
Nada na nossa experiência seguiu aquela narrativa do gênio isolado, do artista que é uma alma inspirada independente dos seus arredores e cujos versos traduzem as coisas do éter ou do fundo do seu âmago. Até podemos falar em inspiração em algum grau — o Gontijo e o Bernardo volta e meia chegavam nas reuniões com poemas novos que apareciam assim, num estalo — mas o principal sempre foi mais o aspecto de trabalho em cima dos versos, de produzir, testar e pensar “como ficaria se eu cortasse esse verso aqui?” ou “e se eu passasse essa parte para cá?”. Mesmo um poema ruim pode ser salvo pelo corte radical. Às vezes você tem uma ideia boa, uma imagem pungente, mas ela se perde no meio de retórica, sentimentalismo ou redundâncias, e é muito bom quando alguém consegue enxergar essa flor no meio do lodo e assim indicar o caminho a seguir.
Como eu falei, nós quatro nos reuníamos para massacrar nossos poemas até que eles ficassem bons — e, com o tempo, cada vez menos poemas eram brutalmente aniquilados, e a régua foi subindo. Mas essas reuniões, na maioria das vezes, não eram apenas nós quatro. Muitas pessoas passaram por elas, tanto no papel de trazer seus poemas quanto no de dar pitacos. É óbvio que tudo só funcionou porque havia a atmosfera certa para isso (que eu entendo como uma mistura de seriedade e descontração) e todo mundo estava disposto a comentar as coisas com sinceridade e a melhorar. Compreendo que, em outros contextos, isso poderia virar pretexto para intriguinhas e comentários maldosos… e, mesmo assim, nem todo mundo se deu com esse método. Teve pessoas que passaram por nós e nunca mais voltaram ou que tentavam transformar todo e qualquer poema numa outra coisa que fugia totalmente do projeto. Mas, no geral, eu diria que o saldo foi positivo e eu recomendo demais para quem quer escrever poesia a sério isso de se reunir com grupos de 3, 4, 5 outras pessoas com interesses parecidos e testar essa política de corte radical.
No mais, posso dizer que fui parte da história do escamandro e, piadinhas com poesia à parte, tenho muito orgulho por isso.
Assinar a Mercurius Delirans literalmente não custa nada. Mas se quiser dar uma força, você pode comprar meus livros. Aproveita que o meu Momo Rei está com desconto no site da Kotter.
Eu fui, eu tava, eu já apareci em reunião com a intenção de dar pitaco, mas fiquei tão chocada com a honestidade brutal ao passar a caneta nos poemas que me recolhi à minha insignificância. Vocês eram os rockstars-mor numa fase muito interessante das Letras, e eu lembro com carinho de ser uma groupie que lia os posts do escamandro escondida no trabalho.
(Talvez os poemas engavetados do Guilherme já rendam pelo menos dinheiro pra uns 3 meses de aluguel, já que nessa época ele ganhou a melhor minibio que poderia colocar no Lattes: MUSO DA FLIP.)
Texto maravilhoso, deu saudade daqueles tempos. O Escamandro e seu método poundiano foi uma das minhas maiores experiências literárias. Sem contar que era divertido pra caramba.