M. D. #10 – A psicogeografia mítica de Super Xuxa contra Baixo Astral
É isso mesmo que vocês leram. Hoje vamos fazer jus ao nome da newsletter.
Sempre fui fã de um gênero de análise de mídia que é a aplicação de conceitos meio cabeçudos para coisas que ninguém imaginou que fosse receber esse tipo de coisa, e hoje é a minha vez de brincar disso1.
Recentemente eu revi esse filme (ideia da Maíra) e tem algumas coisas que me fascinam nele que acho que valia a pena comentar e provavelmente vão servir para entreter vocês que usam a Mercurius Delirans para procrastinar no serviço. É sempre um prazer para mim ajudar a diminuir um pouco a produtividade do país.
Se você é brasileiro, você sabe quem é a Xuxa. E, se você é da minha geração ou um pouco mais velho, é muito provável que tenha visto alguma obra cinematográfica dela em algum momento, ou então um dos MAIS DE 40 FILMES da filmografia dos Trapalhões (rolava bastante crossover)2. Super Xuxa contra Baixo Astral, escrito e dirigido por Anna Penido, jornalista e ativista ecológica, e codirigido por David Sonnenschein (que cuidou dos desafios dos efeitos especiais), entrou em cartaz em 1988 e foi uma superprodução milionária para a época, superando até o ROBOCOP no número de gente que ele levou aos cinemas — quase 3 milhões de brasileiros. É meio doido pensar na escala das coisas, né.
Então, primeiro de tudo, este texto não é uma resenha (não pretendo usar a Mercurius Delirans para isso, tem gente mais qualificada do que eu). Não quero discutir se esse é um filme bom ou um filme que eu recomende não ironicamente. Não, com certeza não é. Dentre seus muitos problemas, tem o fato de ser uma obra de mídia infantil de uma época anterior à revelação de que esse material também é visto por adultos (geralmente acompanhando as crianças) e que, por isso, é bom incluir algumas coisas mais complexas no roteiro pensando nesse público. O filme também é desavergonhado no uso de product placement (que ganha contornos ainda mais cínicos na justaposição com as mensagens ecológicas), não há sutileza, complexidade ou nuance em nenhuma nas lições de moral e diálogos (não que alguém esperasse isso, né), as músicas são dureza e a qualidade da atuação de todo mundo com quem a Xuxa contracena só serve para ressaltar o fato de que, como ela mesma reconhece, ela era uma apresentadora de TV e não atriz.
No entanto, dito isso, tem algo de fascinante nesse filme. O modo como ele trata a representação da realidade (o que chamamos pelo jargão de “mímese” na teoria literária) é diferente do que se vê no cinema e um assunto que eu gostaria de examinar neste texto.
OK, mas sobre o que é Super Xuxa contra Baixo Astral? O título já entrega bastante coisa. Nossa heroína loira de shortinho beira-cu e ombreiras anos 80 é a Xuxa, enfrentando uma entidade ctônica chamada Baixo Astral, que é meio como uma encarnação de todo sentimento ruim — em inglês, parece que o título é Super Xuxa versus Satan, inclusive. Quem interpreta o vilão aqui é o Guilherme Karan, e sua atuação realmente é um ponto alto. O filme começa com uma propaganda da Suvinil peça musical em que a Xuxa inspira um grupo de crianças com latas de tinta a pintarem um muro pichado. Sua ação sai no jornal e irrita o vilão, que planeja um contra-ataque — a degradação do espaço urbano deprime as pessoas e isso é bom para o Baixo Astral. Ele tem dois planos ao longo da história: o primeiro é sequestrar o cachorro da Xuxa, o Xuxo. Aparentemente, ele tem o poder de amplificar sentimentos ruins e explora isso: Xuxo está com fome e, sob a influência do Baixo Astral, ele direciona sua raiva e frustração para a Xuxa. Tendo caído nesse estado de espírito, Xuxo fica vulnerável a ser sequestrado pelos dois capangas do Baixo Astral, Titica e Morcegão. Seu outro plano envolve sequestrar um menino problemático, o Rafa, com tendências meio marginais (ele tenta roubar uma moto no começo do filme) para treiná-lo como seu sucessor.
Assim que a Xuxa descobre que seu cãozinho sumiu, ela faz o que qualquer pessoa faria: tira um cochilo abraçada por uma almofada falante. Sonhando, ela entra na tela do televisor e embarca numa aventura que virá a conduzi-la até o Alto Astral, a força oposta ao nosso vilão (e por isso capaz de destrui-lo). Primeiro ela atravessa uma muralha com a ajuda de uma lagarta, a Xixa (óbvio que ela vai virar borboleta até a metade do filme). Depois temos algumas mensagens ecológicas com a travessia de um deserto que já foi floresta, onde a Xuxa encontra os lango-langos (um boneco que fazia sucesso nos anos 80, aqui transformado em criatura folclórica3) e a travessia de um rio com a ajuda de um boto cor-de-rosa, que é libertado de uma rede graças à nossa heroína. Na sequência, Xuxa sobe a Árvore do Conhecimento que a leva ao Alto Astral, onde ela adquire um cristal que será usado no embate derradeiro com o vilão. Devidamente armada, ela e a Xixa, já metamorfoseada em borboleta, se preparam para sua catábase.
Os planos de Xuxa de invadir o Baixo Astral e resgatar seu cachorro encontram um obstáculo na figura de Morcegão, que incorpora o papel de um burocrata de má vontade. Com um dicionário e uma das músicas mais absurdas do seu repertório (“Pega a burocracia, joga na bacia”??), ela o vence e avança. Passando por cima também de Titica ao som de “ei, machão”, o palco está armado para o prolongado confronto final, que envolve uma cena de cabo de guerra com a coitada da Xixa, o cão Xuxo treinando suas pulgas para o ajudarem, a fuga do menino sequestrado (e suas tentativas de libertar outras crianças que foram abduzidas antes dele) e uma tentativa de Baixo Astral de dominar a Xuxa com sua força depressiva, que nos rende a cena, maravilhosamente improvável, de uma Xuxa gótica. No fim, Xuxa dispara um arco-íris do seu cristal, o Baixo Astral é destruído, seus capangas são convertidos e aparecem nas cenas finais alegrando as crianças. E todo mundo comemora repetindo a música da abertura4.
Alto astral, baixo astral
A primeira coisa que eu queria apontar é que eu acho que hoje não se usa tanto a gíria “baixo” ou “alto astral”, mas são termos que eram parte integral do léxico da TV dos anos 80 e 90. O que é bizarríssimo para mim é que, é só estudar um pouquinho de esoterismo para reparar que essa expressão tem origem na literatura esotérica do século XIX. Claro.
Não quero entrar muito em detalhes históricos, porque ainda preciso chegar no ponto principal do texto, que não é este. Para resumir, o termo “astral” vem, claro, de “astro” e trata não apenas do conceito das emanações dos astros em certas cosmologias mágicas, que vão da antiga Babilônia até a ciência oculta de Al-Kindi e talismãs astrológicos medievais, mas também do espaço intermediário onde esse tipo de emanação transita, que em Agrippa é chamado de plano celestial, ficando entre o terrestre e o divino. Posteriormente, na Teosofia, essa teoria esotérica dos planos da existência vai ser refinada mais um pouco, e é daí que derivamos o alto e o baixo astral. O astral é o plano das emoções e dos sonhos, além de um território ocupado por vários tipos de seres espirituais. Seres mais densos, mais ligados à matéria e ao ego, ficam no astral inferior enquanto os mais sutis, geralmente por isso mais benévolos, ficam no astral superior, e a influência desses seres seria capaz de nos afetar, inclusive emocionalmente. Como isso foi parar no discurso popular, eu nunca vou saber. Mas é uma informação útil para entendermos o vilão desse filme.
E isso nos leva ao tema que eu expus no título desta edição. O que diabos eu quero dizer com uma psicogeografia mítica?
Bem, quando a gente fala em fantasia, geralmente as pessoas pensam num certo grupo de obras de ficção, como Harry Potter e Senhor dos Anéis ou mesmo Game of Thrones. E talvez eu tome pedrada por isso, mas, a meu ver, todas essas obras são, dentro da minha própria concepção do fantástico e do imaginativo, essencialmente realistas, pelo menos em termos de construção de realidade. Como assim?
O termo “realismo” tem trocentos sentidos e não há espaço numa newsletter para sequer começar a resumir a história dessa discussão na arte, na literatura e na filosofia. Por isso, para ser sucinto, estou usando o termo “realismo” para me referir a uma noção pós-iluminista da realidade, a ideia de que o mundo é um lugar coeso e regido por leis que tendem a se manter mais ou menos constantes. Uma narrativa realista é uma em que predomina a causalidade.
Acho que uns exemplos caberiam bem aqui, especialmente uns exemplos contrários. Qual é o tipo de narrativa em que se pode abrir mão da causalidade e de leis coerentes quanto à construção do mundo? O exemplo mais ilustrativo é o caso do mito. Nos mitos vemos os deuses interagindo com seres humanos, gente sendo transformada em animais, plantas e estrelas, temos objetos mágicos e embates inimagináveis entre forças cósmicas. Mas essas coisas raramente são submetidas a uma lista de regras internas pelas quais elas devem operar, e essa é a graça da coisa.
Vamos pensar num mito grego como o de Orfeu. Por que é que Orfeu não pode olhar para trás ao trazer Eurídice de volta? Não existe nenhum motivo lógico e causal para isso, e qualquer tentativa de explicação que tente oferecer algo do tipo vai soar meio burra, meio Neil DeGrasse Tyson da vida. Ele não pode olhar para trás porque é isso que a narrativa está dizendo, você que se vire para tentar interpretar. E interpretação do mito de Orfeu é o que não falta. É um mito que explora temas de amor, luto, saudade, fragilidade humana, e há uma profunda riqueza nisso. Esse elemento narrativo acausal, que parece arbitrário e não está preso às contingências materiais da narrativa, a partir do qual os leitores podem derivar todo tipo de leitura, com base nas suas próprias subjetividades, é a raiz do poético, essencialmente.
A questão é que ambientar uma narrativa no plano mítico é desafiador. O gosto contemporâneo tem um apreço por enredos bem construídos, pelo movimento de geração e esvaziamento de tensão, por encadeamentos lógicos que culminam num tipo de clímax (tratarei disso num outro momento, inclusive). E fica muito difícil construir essas coisas quando não é bem determinado o que pode ou não pode acontecer. Mitos possuem também alguma relação com o sonho, e todo mundo acha um saco ouvir um conhecido relatar um sonho que ele teve, se for muito longo.
Na literatura temos muitos exemplos de obras que flertam com esse tipo de coisa, mesmo que não necessariamente mergulhem de cabeça na acausalidade. “A balada do velho marinheiro”, de Coleridge, é um bom exemplo (qual a relação entre a morte do albatroz e a “maldição” que recai sobre a tripulação?), que Harold Bloom compara com outra situação parecida nas Mil e uma noites, quando um homem é atacado por um djinn após jogar cascas de tâmara num poço e sem querer acabar furando o olho do filho do djinn (a lógica do mundo dos djinns, assim como das fadas, não é como a lógica do nosso mundo). Os romances de Lewis Carroll são um outro bom exemplo, e A metamorfose de Kafka nos oferece uma bela ilustração da intrusão do acausal em nosso mundo prosaico, sem que ele seja reduzido de volta ao causal (o que se poderia dizer também de muito do chamado realismo mágico). Seria um romance muito mais pobre se a transformação de Gregor Samsa tivesse qualquer explicação, e o fato de que Richard Dawkins causou todo um fuzuê no tuíter um tempo atrás porque não conseguiu entender o romance diz muito da indigência imaginativa de gente que nem ele.
(Para quem quiser ler mais sobre isso, eu traduzi um trecho da Anatomia da Crítica, do Northrop Frye, para o escamandro muito tempo atrás, que trata desse tema. O livro do Bloom que eu citei é o Visionary Company.)
Uma realidade onírica
E agora eu volto ao filme da Xuxa e ao X (risos) da questão deste texto. É nesse tipo de representação da realidade que Super Xuxa contra o Baixo Astral opera. Por exemplo, no começo do filme, na apresentação do Baixo Astral (que é maravilhosa, hei de admitir), vemos um par de óculos escuros caindo no bueiro e indo parar nas mãos do vilão. Ele não mora literalmente no esgoto, que nem as tartarugas ninjas. A Xuxa não desce até lá entrando num bueiro. Em vez disso, esse é um recurso para mostrar que ele habita um tipo de subterrâneo metafórico, infernal, que é escuro e sujo pela simbologia da sujeira e da escuridão, mas sem qualquer ligação com a funcionalidade de uma rede de esgoto urbana. Aliás, eu achei bastante clássico que “Baixo Astral” seja tanto o nome do lugar quanto o nome do vilão, assim como é o caso do Hades ou do Érebo na mitologia grega.
Como eu descrevi acima, o começo da jornada da Xuxa se dá num sonho. Ela dorme e entra no televisor como um tipo de portal. E esse seria um recurso manjado, né, fazer todo o filme se passar num sonho e depois ela acordar, mas não é o que acontece. Em vez disso, o filme borra as fronteiras entre a realidade física (“o que está acontecendo de verdade”) e a realidade simbólica (“sonho”). Por isso eu chamei de uma psicogeografia. Estamos acompanhando o caminho de ascensão da alma da Xuxa até os estratos superiores do plano astral.
A jornada da Xuxa tem seis “fases”, essencialmente: um primeiro obstáculo com a muralha, onde ela encontra a Xixa (e graças a ela descobre que é tudo um truque de espelhos); o deserto; a travessia do rio junto com o boto; a árvore; a ascensão ao Alto Astral; e a descida ao Baixo Astral. Embora o filme se passe visivelmente no Brasil, nenhuma dessas localidades é um lugar físico que exista aqui — ela não está passando do semiárido do sertão para o rio Amazonas. São, reitero, lugares simbólicos. Simbólicos do quê? Aí vai de como cada um interpreta. Um psicanalista ou um adepto da psicologia analítica junguiana com certeza teria muito o que dizer desse trajeto, mas também seria possível mapeá-lo de acordo com esquemas mitológicos ou mesmo esotéricos, como a Árvore da Vida cabalística (mas eu não vou fazer isso, porque aí já é demais) ou a Jornada do Herói do Campbell. Em todo caso, é fato que há aí aquela liberdade do meramente causal que a gente encontra no mito, e às vezes vemos até mesmo certos elementos que reforçam uma ideia de intencionalidade desse simbolismo por parte do roteiro.
Por exemplo, quando a Xuxa chega ao pé da Árvore, ela é confrontada por duas figuras que a confundem: um papagaio e um macaco (vestido perturbadoramente com um uniforme de gari da COMLURB. Sem comentários). Se aquela é uma Árvore do Conhecimento, faz todo o sentido que a Xuxa seja confrontada por dois animais que são simbólicos de um falso conhecimento. O macaco e o papagaio, no viés que nós compartilhamos enquanto público desse filme (poderia ser diferente em outras culturas), são animais que representam a capacidade da imitação, sem uma compreensão, no entanto, do que estão imitando. Quem a ajuda aí é a Vovó Cascadura, um cágado — e quelônios, por sua vez, são representativos justamente de sabedoria. É um detalhe pequeno, mas que serve para dar uma camada de significado que eu valorizo muito.
Nem vou entrar na questão das metáforas em torno da lagarta Xixa e sua transformação em borboleta logo antes da apoteose de Xuxa, porque isso ia render muito também. Joseph Campbell teria um orgasmo.
Enfim, a meu ver, esse tipo de trabalho imaginativo é louvável, ainda mais num filme infantil. Super Xuxa contra Baixo Astral podia facilmente optar por uma narrativa mais realista, no sentido que eu venho fazendo da palavra aqui. É o padrão, afinal, ao qual esse tipo de narrativa representa uma exceção. E num mundo do predomínio do literal, em que as pessoas dão atenção para gente com a cognição limitada do Dakwins, no que diz respeito ao pensamento simbólico e metafórico, esse tipo de coisa é um pequeno oásis.
Para quem quiser saber mais, Super Xuxa contra Baixo Astral completou três décadas um tempo atrás e tem uma matéria da Revista Quem, sobre os bastidores, comemorando esta data, neste link. Dá para assistir no GloboPlay, mas tem também caído no caminhão da internet.
E agora você pode dizer que leu um texto de um doutor em estudos literários, de quase 3000 palavras, sobre um filme da Xuxa.
Assinar a Mercurius Delirans literalmente não custa nada e eu não tenho planos de monetizar a newsletter tão cedo. Se eu te ajudei a se distrair um pouco das dores da existência neste plano físico e você quiser dar uma força, sempre pode comprar meus livros. No entanto, neste momento tem coisas mais urgentes rolando. Imagino que você já saiba que, na data em que este texto está saindo, o Rio Grande do Sul está sofrendo o que é provavelmente a maior catástrofe climática da sua história. Quem tiver condições de contribuir pode mandar doações pela rede dos Correios gratuitamente ou fazer um PIX para organizações como a CUFA RS (doacoes@cufa.org.br), a Cozinha Solidária do MTST (enchentes@apoia.se), a Casa de Cultura e Resistência (casadeculturaeresistencia@gmail.com) ou outro projeto do tipo.
Eu também já fiz uma análise hermética do filme Cats, mas se perdeu nas areias do tuíter.
Se eu fosse uma dessas pessoas que ganham dinheiro para sofrer indignidades na internet, eu com certeza iria me submeter a assistir toda a filmografia para gerar entretenimento. Como não é o caso, vou deixar isso para outras pessoas.
Um boneco, uma mercadoria, ser tratado como se fosse um ser folclórico é definitivamente uma das coisas mais anos 80 já feitas. Me lembra como o He-Man começou com o design dos bonecos e depois os caras pensaram numa história.
É o que se chama de Ringkomposition. Menciono este fato apenas pela graça de este ser o que eu imagino que seja o contexto mais improvável em que alguém já usou o termo Ringkomposition.
Se um dia eu me questionei do porque assinar essa newsletter, hoje eu tive a confirmação: vale muito a pena.
Baita texto!