No mês passado, eu dediquei a edição #08 da Mercurius Delirans a um tipo de “guia” ao Casa de Folhas, o romance de Mark Z. Danielewski que eu tive o privilégio de traduzir para a Darkside e que saiu este ano. A ideia, como dito, era oferecer um tipo de F.A.Q. para quem não está familiarizado com o livro, seus temas e os motivos por ele ser tão, digamos, famoso. Desde então, saíram mais algumas matérias por aí e tivemos também uma live sobre o livro, por isso acho que seria legal aproveitar para falar um pouquinho mais1.
Primeiramente, a live: eu fui convidado pela Eliza Morinaka, da UFBA, a participar de uma conversa intitulada “Casa de Folhas: Desafios na Tradução e Diagramação”, junto com a diagramadora Lilian Mitsunaga. O evento, promovido pela ABRAPT, aconteceu ao vivo, na última quinta, dia 9/5. Nessa ocasião, a gente compartilhou algumas curiosidades da nossa experiência, eu enquanto tradutor, ela enquanto diagramadora, além de respondermos a perguntas. Foi uma live breve, apenas 1 horinha, e a gravação está disponível no YouTube, neste link aqui.
Uma história que a Lilian trouxe e que eu achei muito interessante, dado o contexto da coisa toda, foi o relato de que, lá pelas tantas, o software que ela usa para diagramar o livro deu um tilt bizarro (ela relata essa história por volta dos 34 minutos da live). Um negócio que ela nunca tinha visto antes, completamente inexplicável e aleatório: um quadrado preto que apareceu em cima das páginas e que não saía nem com reza braba.
Considerando o livro em questão, eu achei maravilhoso esse relato. Quem leu o romance, vai lembrar que aparece um quadrado preto num certo momento do livro, tem várias páginas d’O Registro Navidson que foram avariadas por tinta preta e até uma descrição de um desenho das crianças, um dos filhos de Navidson, que é uma folha inteira preta, exceto pelas margens, povoadas por monstros. Todo o romance, para além do conceito óbvio da casa que é maior dentro do que fora, brinca com o tema do quadrado preto, do escuro, do vazio, da aniquilação e esquecimento, essa força que se recusa a ser controlada e que invade e desfigura o que era para ser um espaço seguro e familiar.
Assim sendo, aparecer um quadrado preto fantasma na diagramação é a coisa mais Casa de Folhas que poderia acontecer, dentro das possibilidades de acontecimentos que não causassem nenhum dano a longo prazo, físico ou psicológico, claro. A outra coisa mais Casa de Folhas que poderia acontecer seria eu ter enlouquecido durante o trabalho de tradução e desaparecido, insone e delirante, após entregar, não o texto traduzido, mas 700 páginas de aleatoriedades, meio que nem o Jack Torrance n’O Iluminado. Ainda mais que — lembrem, — o livro que eu fiz para a Darkside logo antes de pegar o Casa de Folhas foi o Dicionário de Demônios.
Bizarrices à parte, nessa live eu li uns trechinhos da minha tradução. Eu não sou a melhor pessoa para ler coisas em voz alta (eu fico nervoso), por isso achei que seria interessante compartilhar aqui, por escrito, a passagem lida na live. Para dar um pouco de contexto, é um pedaço de um capítulo sobre ecos. Zampanò acabou de descrever o momento em que a família, no filme, percebe que a casa não apenas é um pouco maior por dentro do que por fora, como também está crescendo. E aí ele decide que seria interessante falar da questão do eco, incluindo tudo que ele sabe da mitologia e física dos ecos, o que inclui um trecho de crítica literária em cima de um poema sobre o eco. O filho da puta é bom de enrolar.
O trecho que eu li fica lá pela página 50 (45 no original). Segue:
É interessante que, apesar de sua capacidade maravilhosa de observação, A Figura de Eco contém um erro perturbador, ao realizar uma modulação poética sobre uma voz que ressoou, ela própria, há mais de um século. Enquanto discute o poema “O Poder do Som”, de Wordsworth, Hollander cita, na página 19, os seguintes versos:
A vós, Ó Vozes, Sombras, Sinais da voz — aos cães e clarins das caçadas A voltar dos penhascos e prados rochosos Da arcada, grata, celestial ressuscitadas — [Grifos meus, para ênfase]
Talvez seja somente um erro tipográfico cometido pelo editor. Ou talvez o editor estivesse apenas transcrevendo, com zelo, um erro cometido pelo próprio Hollander, que não era apenas pesquisador, mas também poeta, e que, nesse pequeno deslize em que um “a” substitui um “u” e um “s” milagrosamente desaparecidos, revela sua própria relação ao sentido do eco. Um significado do qual Wordsworth jamais partilhou. Consideremos o texto original:
A vós, Ó Vozes, Sombras, Sinais da voz — aos cães e clarins das caçadas A voltar dos penhascos e prados rochosos Da arcada, grutas, celestial ressuscitadas — [Grifos meus, para ênfase]
Embora a poética de Wordsworth retenha as propriedades literais e permaneça dentro da jurisdição canônica do Eco, a de Hollander encontra alguma outra coisa, não exatamente “religiosa” — o que seria hiperbólico — mas “compassiva”, o que, enquanto eco da humanidade, sugere o mais profundo retorno de todos. Afora essa recorrência, alteração e comensurada referência simbólica, os ecos também revelam o vazio. Porque os objetos sempre abafam ou impedem a reflexão acústica, apenas lugares vazios são capazes de criar ecos de uma nitidez duradoura.
Ironicamente, um espaço oco apenas faz aumentar a qualidade sinistra de alheamento inerente em qualquer eco. O atraso e a repetição fragmentada criam uma noção de haver um outro que habita um lugar necessariamente deserto. É estranho como algo tão insólito e alheado do próprio eu, até mesmo fantasmagórico, como alguns sugeriram, possa conter, ao mesmo tempo, um certo conforto resiliente: a garantia de que, mesmo que seja imaginário e, na melhor das hipóteses, o produto de uma parede, ainda assim existe algo lá fora, algo para se prender na face do nada.
Fim da citação aqui.
Esse trecho me deixou descaralhado, quando eu cheguei nele, por vários motivos. O primeiro é que, quando a gente lê o Zampanò, a gente pensa que ele está inventando. Afinal, a maioria das referências dele são falsas, ele cita o tempo inteiro livros sobre um filme que não existe. Mas, não, o John Hollander existe, claro, inclusive o Danielewski parece que estudou com ele, só que a maioria das pessoas que não sejam do curso de Letras provavelmente não vai saber disso (e mesmo dentro das Letras eu não acho que ele seja o crítico mais popular do mundo); esse livro, The Figure of Echo, existe também, não é uma obra fictícia atribuída a um autor real; e nele tem mesmo esse erro de digitação — o que a gente chama de “gralha” no jargão editorial — na página 19 de fato.
O poema do Wordsworth, “On the power of sound”, é um tanto longo e conta com 14 seções. O trecho em questão são os primeiros quatro versos da seção III e diz o seguinte:
Ye Voices, and ye Shadows And Images of voice — to hound and horn From rocky steep and rock-bestudded meadows Flung back, and, in the sky's blue caves reborn —
O poema inteiro pode ser lido clicando aqui.
É um pouco tortuoso. O eu-lírico de Wordsworth está se dirigindo às vozes e às sombras e imagens da voz (o eco, portanto, que é o tema do capítulo). O cachorro e a corneta (hound and horn) são alusões às figuras envolvidas numa caçada que emitem esses sons, e esse eco é arremessado de volta (flung back) para eles dos prados cobertos de rochas e de penhascos rochosos, renascendo nas cavernas (ou grutas) azuis do céu. O erro de digitação em Hollander troca o caves (cavernas) por care (cuidado, preocupação).
Como eu sou meio doente, eu fui atrás e catei esse erro na edição que está disponível no Internet Archive, ó:
(link)
Curiosamente, se você procura num outro lugar, como o Google Books (aqui), você não acha esse erro mais. Presume-se que alguém deve ter achado e corrigido na reedição... só que também não corrigiram 100%, porque o care virou cave, mas continuou errado, porque o original era no plural, cavessss.
Pois é, é um detalhe muito pequeno e irrelevante, mas me fascina porque deixa claro para mim que o Danielewski, com certeza, é meio doido, igualmente. Diz na Wikipédia que ele se formou em Yale em 1988, onde estudou com o próprio Hollander. Imagino que, em algum momento da graduação nos anos anteriores a 88, ele deve ter esbarrado nesse livro e registrado esse erro.
O negócio é que: a poesia é, por definição, o gênero em que a gente pressupõe que tudo que está na página é intencional. Por exemplo, ninguém fala rimado, e é raro rimas acontecerem por acaso (já meias-rimas toantes são mais comuns). Quando um poeta rima, ele quer deixar claro que está fazendo de propósito, e o mesmo vale para outros recursos poéticos.
Num mundo de livros impressos, mesmo um erro de digitação pode ser um recurso poético. Quando a gente está lendo um livro qualquer e esbarra em algo estranho, a primeira reação é presumir que seja um erro, porque erros acontecem no processo de preparação de um livro. Só que no poema, não. No poema a gente parte do princípio de que é para ser assim mesmo. O Guilherme Gontijo Flores brinca com isso e leva a coisa toda às últimas consequências num soneto do seu Brasa Enganosa chamado “A resivor”, que diz o seguinte:
pezado revisir, predoe o autor pro cada galha gáfica que suja – por mais qeu ele ere não convém que se urja –: concerte a penas, seja la o que for. mas rapida que a mete o dedo corre, & ,se escapole aglu,a gataruja (até paresse que o pessar ser suja qual medra que da buda escore,) se algua gatruja seca pole, cofie em su idea ;anoute o meto. a rima (nida sm lina que lhe aprove) neminagime qe ele se consloe por esrcver mlhro que o pletro: pios nnuca uove o qeu mhleor se ouve.
(eu rio bem toda vez que eu leio esse poema. Eu ia só linkar, porque ele tinha saído na revista Mallarmargens uns anos atrás, mas pelo visto a revista foi mais uma vítima da impermanência da internet, aí tive que copiar e colar mesmo.)
É parte do jogo da leitura de poesia. A gente finge que tudo no poema está lá de propósito, e os poetas escrevem de acordo, explorando essa reação. Por isso, quando o Danielewski esbarra no erro do Hollander, faz sentido também ele brincar de levar a sério essa interpretação em que os céus não formam apenas uma caverna azul indiferente aos ecos, mas um lugar de preocupação e cuidado.
Casa de Folhas foi escrito entre os anos de 93 e 99. Acho divertido demais pensar que ele ficou ali talvez uma década guardando como se fosse um tesouro o que é uma completa irrelevância, uma brincadeira acadêmica em cima de um erro, que ele trouxe para dentro do romance, porque é isso que romancistas fazem, né. Eles pilham a vida real e trazem esses causos para dentro da obra.
E, assim, as reflexões do Zampanò nesse capítulo já são completamente tangenciais ao tema principal, mas esse detalhe é especialmente minucioso e me marcou, porque, né, eu tive que traduzir isso.
O que eu fiz aí: mantive o metro (só ampliei o pentâmetro jâmbico do original para um dodecassílabo, porque ninguém é de ferro), uma riminha (horn/reborn virou caçadas/ressuscitadas) e aí tentei encaixar uma palavra que coubesse e pudesse ser um erro de digitação plausível. “Gruta” é um dos sinônimos possíveis para “caverna” e aí seria razoável alguém trocar um “u” por um “a” e fazer “grata”. O céu virou uma “arcada celestial”, porque aí dá para inserir um aposto no meio, para descrever o céu como “grutas” e fica no feminino para concordar com o “grata”. E assim, quando o Zampanò começa a tergiversar sobre as diferenças de sentido e a intrusão de uma natureza mais compassiva no Wordsworth do Hollander, essa discussão ainda faz sentido, por causa do “grata”. Talvez não desse para manter esse efeito se o erro de digitação fosse outro, sei lá, tipo “furna” e “fuma”.
Precisava disso? Provavelmente não. Se você olhar a tradução espanhola e a tradução italiana, não tem isso. A edição espanhola botou o original inglês, uma glosa em prosa embaixo e foda-se. A edição italiana, nem a glosa do inglês colocou, o que eu acho meio maldade. Mas acontece que os irmãos Campos deixaram a gente no Brasil mal acostumado, né, e eu não ia conseguir dormir direito se não fizesse uma tradução que funcionasse nesse contexto. Como disse, é um detalhe irrelevante no grande esquema das coisas — e sinto muito pelos leitores que caíram aqui atrás de algo mais substancial quanto ao livro e acabaram recebendo os bastidores de tradução de poesia, — mas é disso que se constitui a vida, não é verdade?
E, só para deixar organizadinho, segue uma listinha de outras matérias que saíram recentemente sobre o Casa de Folhas:
Na revista Gama.
Na Publish News.
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Um detalhe curioso é que esta edição é sobre gralhas e eu cometi um erro de digitação no título e botei #10 quando era para ser #11. Não foi de propósito, é que eu só sei contar até 10 mesmo.