M. D. #17 – O efeito Colin Robinson na literatura
Ou: autores tão chatos que não é possível que eles não estejam se alimentando do tédio causado
Se você lê literatura contemporânea, eu imagino que é bem provável que já tenha passado por essa situação: você comprou o último romance de um autor badalado, chegou em casa, tirou o plástico da embalagem e sentou para ler1. A prosa é fácil e acessível, e a narrativa em questão tem uma pegada intimista, seu protagonista é de classe média ou média-alta, com educação o suficiente para ter um alto grau de autoanálise, ciente de suas próprias neuroses, obsessões e aflições. E, oh boy, como ele tem aflições! Então, ao longo de suas de 150 a 300 páginas, a gente acompanha os pensamentos e sentimentos dessa figura, a princípio com curiosidade, mas essa curiosidade inicial vai minguando até que, lá pelas tantas, você percebe que está com tédio, que o livro é insuportavelmente chato.
O sol está brilhando lá fora, tem pessoas que querem sair com você (há quanto tempo você não vê seus amigos?), as horas da sua vida são limitadas, não tem nenhum motivo para continuar acompanhando as patacoadas desse zé mané que sequer existe, mas, apesar desse detalhe é ele mesmo a causa de todas as suas próprias infelicidades. E ele não tem nem a graça de ter, pelo menos, umas infelicidades diferentonas. Esse livro hipotético não passa de uma longa série de acontecimentos, pensamentos e sentimentos que chegam sem muita amarração, sem um sentido maior, sem um motivo para que você continue dando atenção para aquilo. Se apertar um pouco os olhos, é como estar lendo a autobiografia de um influencer. Aí fica a pulga atrás da orelha: o que aconteceu? O que deu errado?
(Acho que é bom avisar que, pelo bem do nosso tênue verniz de civilidade, não vou falar mal aqui nominalmente de autores vivos brasileiros. Isso dificulta um pouco para demonstrar o argumento, mas tudo bem.)
A meu ver, uma parte da culpa aqui deriva de uma certa tendência que se estabeleceu no mundo literário nacional do que poderíamos chamar de “prosa de jornalista”. Muitos romancistas de sucesso no país nas últimas décadas, afinal, foram jornalistas, trouxeram consigo do seu ganha-pão essa forma de lidar com o texto e a coisa pegou, porque, né, tendências são contagiosas. O texto precisa ser ágil, claro, acessível, seco. É um recurso compreensível, pois oferecer uma leitura obscura, difícil e exigente é uma ótima forma de escrever um livro que ninguém vai ler (Guimarães Rosa não conta, pois claramente o pacto com o cramunhão de Riobaldo foi inspirado em uma experiência real).
E aí tem um segundo componente: se você quer escrever Um Livro Sério que vai ser levado a sério, que vai concorrer ao Jabuti de romance literário e não romance de entretenimento, o cerne da sua história não pode ser o enredo. Foco em enredo é coisa de folhetim, não é sofisticado. O que você quer é “explorar a condição humana”, fazer uma coisa meio existencialista, cavucar o fundo do ser por meio dos seus personagens.
E aqui começam os nossos problemas, porque se você não tem uma prosa exuberante, dá para distrair o público-leitor com um enredo cheio de reviravoltas e com o truque de ir quebrando os capítulos no momento de maior suspense. Dan Brown e muitos outros fizeram fortuna assim. Agora, se na nossa mistura vai entrar uma prosa meio bolacha cream cracker seca com um enredo quase inexistente, então, pelo menos, o nosso autor hipotético vai compensar com um personagem que é muito interessante... não é, não é?
Aí entra o motivo de eu estar chamando esse fenômeno de “efeito Colin Robinson”.
Para quem não tem a referência, este é um personagem do seriado What We Do In the Shadows, uma comédia no formato de mockumentary sobre um grupo de vampiros morando em Staten Island. Junto do grupo de personagens que são mais próximos do estereótipo gótico do vampiro, temos Colin Robinson, um homem frequentemente descrito como "sujeito com cara de Dilbert" e que é um vampiro energético. Ou seja, ele se alimenta, não do sangue, mas dos sentimentos, especialmente tédio e irritação, de suas vítimas. Suas maiores armas para isso são seu tom de voz monótono, hábitos irritantes, gosto por small talk de escritório, uma capacidade seinfeldiana de análise das minúcias insignificantes da vida em sociedade, obsessões das quais ninguém mais partilha e opiniões fortes sobre assuntos tediosos como leis municipais de zoneamento. Este videozinho promocional resume bem qual é a do personagem.
Um outro exemplo assim que é ótimo, mas um pouco mais obscuro, acredito, é o tio Colm do seriado Derry Girls, que segue uma fórmula parecida. Todo mundo que cai na mão dele se vê submetido a ter que ouvir longas histórias repletas de digressões, sem pé nem cabeça, também relatadas com um tom de voz monótono e sem qualquer preocupação com o estado do ouvinte, com a piada recorrente de que suas vítimas se veem visivelmente desesperadas de terem que ouvi-lo. Tem uma ótima seleta de cenas dele aqui.2
Quando a gente soma esses fatores que eu mencionei, tem muitos personagens, sobretudo em romances em primeira pessoa, que dão basicamente essa impressão, a de que o autor é o próprio Colin Robinson e está causando tédio de propósito para se alimentar de nós. Porque não é possível, gente.
Com frequência o livro-Colin-Robinson já é chato logo de cara. Uma coisa que eu aprendi com o meu amigo Gontijo ao escolher um romance para ler é julgar o livro pela página de abertura. Faz todo o sentido, afinal ler um romance é um compromisso que vai se estender durante muitas horas. A primeira página é a chance que o livro tem de fisgar você, de demonstrar o poder de sua economia de palavras, de deixar uma frase de impacto, um mistério, uma cena intrigante, qualquer coisa que dê vontade de continuar lendo.
Mesmo um romance que tem como objetivo explorar o nada, o tédio, a banalidade, como Murphy de Samuel Beckett, tem uma puta frase de abertura: “The sun shone, having no alternative, on the nothing new” (O sol brilhou, sem ter alternativa, sobre o nada de novo). Quantas coisas estão sendo ditas logo aí, nessas poucas palavras? Que resumo fascinante do tom que vai predominar no livro inteiro.
Às vezes, é claro que tem bons livros, clássicos inclusive, que não começam tão bem. Mas, via de regra, vale a máxima de que “de onde menos se espera, é dali que não vai sair nada mesmo”. Se o começo é completamente banal, a culpa é sua por ter insistido e continuado a ler. E, para deixar claro, o tédio e banalidade de que eu falo não resultam de uma falta de coisas acontecendo - por favor, alguns dos meus livros favoritos na vida são Às Avessas, de J. K. Huysmans, e A Paixão Segundo G. H. Estou falando algo um pouco mais intangível, autores que apresentam a pretensão de olhar para o cotidiano moderno, com sua eterna repetição de ciclos maquínicos que moem o indivíduo, e tirar algo de interessante daí, mas fracassam na empreitada.
Tem momentos em que chega a ser pior do que um livro ruim, porque um autor ruim pode ser interessante por conta de sua ruindade3 (pretendo escrever em algum momento sobre o apelo da má poesia, aliás), mas esse tipo de livro nem isso. Tem horas que eles me levam até a questionar a minha capacidade de fruição de literatura. Os caras são premiados, as resenhas são emocionadas, o problema só pode ser eu. Leio um parágrafo desses personagens absolutamente insuportáveis com a cabeça enfiada no próprio cu e não consigo não pensar que a única reação possível é a do Joselito.
Para referência:
Claro que muita literatura fenomenal foi protagonizada por personagens insuportáveis, mas eis o pulo do gato: esses autores sabem escrever. O autor de livros-Colin-Robinson não consegue perceber essa sutileza e acha que vai dar conta do desafio com uma prosazinha ginasial ou então tem uma tamanha relação de complacência com o seu protagonista, talvez por ele ser um alter ego dele próprio, que nem percebe que ele é insuportável4.
Aí eu pego, volto e abro um livro como Os Sertões, de Euclides da Cunha – um livro que, quando eu era adolescente, me parecia o maior tédio do mundo pelo que diziam dele nos livros didáticos. Mas esse filho da puta consegue escrever uma porra de descrição geológica de um jeito interessante. A coisa mais seca do mundo – literalmente inclusive, porque, né… sertão. A sua escolha de palavras e variação vocabular, o ritmo de suas frases e parágrafos, suas impressões e analogias. É absolutamente fascinante e me parece absurdo que o que supostamente era para ser muito mais profundo do que isso (afinal, lembre-se do objetivo do nosso escritor hipotético de “explorar a condição humana”) acabe sendo reduzido a uma pilha de banalidades. Menos interessante do que um punhado de terra.
Se eu fosse resumir aqui meu argumento a uma frase lapidar5, eu diria que a banalidade literária é o resultado de pular de trampolim na piscina das crianças, uma tentativa de mergulhar a fundo onde simplesmente não há profundidade. E isso não é culpa do personagem. Não é que o personagem não seja interessante por conta de suas situações externas, nas quais uma certa banalidade pode se impor, inclusive, por motivo de verossimilhança, mas por sua vida interior. Aí, se o personagem que o autor criou é muito diferente dele mesmo (e aqui eu deixo meu elogio pelo exercício, pelo menos, de tentar se colocar no lugar do outro) e ele não conseguiu ir além do estereótipo, bem, então me parece que o problema é um fracasso da imaginação. Agora, se ele é parecido com o autor (e esse problema que eu estou descrevendo aqui me parece pegar muito em casos de autoficção), o problema é ainda mais complicado, porque o que se tem nesse caso é uma falta de coragem de explorar o lado mais podre de si mesmo, de meter o dedo na ferida de seus próprios traumas e expor aqueles sentimentos feios que tornam complexas as situações em que a gente vive.
“Ah, mas eu não quero meter o dedo na minha própria ferida”, então por que diabos está fazendo autoficção intimista para “tratar da condição humana”??? Pelo amor de Deus, até o Larry David fez isso quando concebeu as cenas de George Costanza em Seinfeld (para quem não sabe, muitas das cenas mais absurdas da sitcom são baseadas em fatos reais). Eu acho que é justo esperar da nossa suposta Alta Literatura™ um pouco mais de coragem e imaginação do que o que se vê numa sitcom dos anos 90.
No fim, eu deixo aqui este apelo para quem tem aspiração a ser romancista. A não ser, claro, que você de fato seja como o Colin Robinson e precise desses sentimentos de tédio e irritação para se alimentar. Longe de mim querer atrapalhar a janta dos outros.
Assinar a Mercurius Delirans literalmente não custa nada e eu não tenho planos de monetizar a newsletter tão cedo. Se eu te ajudei a se distrair um pouco das dores da existência neste plano físico e você quiser dar uma força, sempre pode comprar meus livros.
Por um momento eu pensei em começar esse texto copiando e colando o começo de Se um viajante numa noite de inverno, com a coisa da narrativa em segunda pessoa, o leitor comprando o livro, etc., mas o anjo no meu ombro me dissuadiu. No fim, não faria sentido, porque esse livro do Calvino não tem nada a ver com o que eu vou descrever aqui.
É bom frisar que, assim como o fato de os personagens do Colin e do tio Colm serem chatos é parte da piada das duas séries, também na literatura dá para um personagem, até mesmo um narrador ser comicamente chato de propósito. Nabokov era um mestre disso, com Humbert Humbert em Lolita e o dr. Kimbote em Fogo Pálido.
Aposto que você nunca vai esquecer da Coleen Hoover e o seu “We both laugh at our son’s big balls”. É incrível, digno de um tuíte do dril.
O oposto disso é o que a gente observa num romance como The Magus, do Fowles, que parece ter prazer em torturar o seu protagonista insuportável. O Amarelo-Cromo, do Huxley, de que eu falei aqui antes, também tem um grau muito satisfatório de sadismo, eu diria.
Estou ciente de que corro assim o risco de soar leviano, o que eu acho que é aceitável, porque isto aqui é uma newsletter e não um texto sério.
Putz, agora fiquei vontade de ler um romance narrado pelo Colin Robinson! (o que é bem diferente de ler um livro-Colin-Robinson, cruzes)
Hahaha amigo, eu morro de rir com vc. Esperando os nomes na minha dm... pra gente trocar figurinhas do que EVITAR !!