Mercurius Delirans #07 – Curitiba lynchiana
Ou: não é possível que essas coisas só aconteçam comigo
Prefacio esta edição da newsletter já com o aviso de que eu nem sou lá grande fã do David Lynch. Por isso, peço que não interpretem esse título como uma tentativa de glamourizar a minha cidade natal ao associá-la com um diretor badalado. De certa forma, acredito que o fato de eu não gostar muito do Lynch transforma a terminologia num agravo nesse contexto, na verdade. É como não gostar de Kafka e passar por um pesadelo burocrático… ou ser transformado num baratão.
Via de regra, quando eu falo de Curitiba para pessoas que não moram na cidade sorriso, eu costumo receber duas reações. Se a pessoa já teve alguma experiência negativa com o sul e/ou sulistas (e, bem, é fato que no sul temos um problema com aquele pessoal lá que é fã de bigode de broxa), geralmente a tendência é torcerem o nariz. Do contrário, é comum uma reação meio deslumbrada. Ah, sim, Curitiba é muito bonita, muito limpa. Esse é talvez o adjetivo que eu mais escuto, limpa. Até aí tudo bem, mais ou menos. O foda mesmo é quando usam “europeia” como elogio ou “as pessoas são muito bonitas”, que são expressões que dizem tudo sobre quem as emite. Mas este texto não é sobre isso...
Só para constar, eu nasci em Curitiba, mas passei a minha infância em Campo Mourão, voltando depois para a capital em tempo de adquirir todos os traumas possíveis que dá para ter enquanto adolescente do interior numa cidade de gente famosamente fria. Fiquei em Curitiba entre os anos 2000 e 2017, quando vim para São Paulo. Saí de casa cedo, por questões que também não quero mencionar neste espaço, e boa parte dessas quase duas décadas em Curitiba foram passadas numa quitinete do centro, onde aconteceu a maior parte das anedotas aqui.
Sobre a quitinete em si: imagine um prédio em formato de 8, mas um 8 de relógio digital, quadradão. No centro, fica a área dos elevadores e escadas, enquanto as voltas são os corredores, salpicados com as portas dos apartamentos. As duas áreas vazadas representam pátios internos no primeiro andar, aos quais não se tem acesso e onde não tem nada, a não ser um chão de azulejo e um vaso de planta solitário. Em cada andar, 22 apartamentos, todos com uma única janela. Alguns dão para a rua (uma avenida movimentada), outros para os fundos... e aí tem uma dúzia de desafortunados no final do corredor cuja janela dá para esse pátio interno, onde você pega apenas um recorte do céu, ao passo que todo mundo que passar nos corredores consegue ver dentro do seu apartamento. Pela descrição detalhada, vocês podem imaginar qual era o tipo de apartamento que eu peguei. A quitinete em si é padrão, chão de taco, um espaço único sem divisão de cozinha, sala ou quarto, mais um banheiro sem janela (o basculante dá para um fosso, de frente para o basculante do banheiro do vizinho). Nada de muito distinto, exceto o fato de que a pia da cozinha fica dentro de um tipo de armário, de modo que dá para fechar as portas e esconder a louça suja da visita (única função que eu consigo conceber para uma pia-armário).
A gente se sujeita a morar nesse tipo de lugar, claro, por motivos de juventude e falta de dinheiro. Quando fomos para esse prédio (plural aqui, porque eu fui morar, na época, com a minha primeira esposa), mal tínhamos coisas o suficiente para encher o apartamento, e a sua proximidade da reitoria da UFPR acabava sendo providencial. Nada, no entanto, poderia ter me preparado para a experiência que foi, de fato, morar lá.
Nossa recepção foi calorosa. Em algum momento do primeiro mês, tivemos que chamar o chaveiro, porque alguém mexeu na fechadura. Depois, um dos vizinhos do corredor, do 615, cuja porta ficava a um passo da nossa (no 612), encheu a cara e passou a madrugada inteira cantando. Até aí tudo bem, coisas de prédio. O foda foi a madrugada em que deu para ouvir uns barulhos estranhos vindos do corredor, que eu não quis ir averiguar na hora por motivos de autopreservação. De manhã, indo para a aula, descubro que a porta de um dos dois elevadores tinha sido arrancada e estava ali apoiada contra a parede, e o elevador parado - inutilmente, já que ele não opera com a porta aberta.
Ah, sim, isso explicava os barulhos. Naquele dia, eu tive que pegar as escadas.
O meu principal suspeito desse ato gratuito de vandalismo doméstico era o vizinho da cantoria, até mesmo porque eu nunca mais vi a figura depois dessa ocorrência. No lugar dele, entrou um estudante angolano, da Geografia, e eu nunca mais tive dor de cabeça, pelo menos não com o 615. Quem visitar o prédio, até hoje (creio) pode reparar que as portas dos elevadores do 6º andar são diferentes. É o único andar cujas portas não combinam. Mas, como viria a cantar Rogério Skylab em “Cadê meu pau?” (uma música que, aliás, saiu naquele mesmo ano em que eu me mudei), o pesadelo só começou.
O 615 foi meio como aqueles adversários de primeiro arco de uma história mais longa (tipo o Raditz em Dragon Ball Z). Durante os 7 anos naquele prédio, além das baratas, meu arquinêmesis foi outro. A vizinha de cima tinha um aparelho de som extremamente potente, que fazia tremer as minhas janelas e era usado para tocar um repertório, em looping, de um total de 4 músicas, sem exagero: “Closer to you”, do The Cure; “Rehab”, da Amy Winehouse; “Boa sorte”, de Vanessa da Mata; e uma do RBD cujo título eu desconheço. Ela também pulava quando ouvia música e às vezes conversava ao telefone com a mãe na janela para todo o prédio ouvir (lembra do pátio interno de que eu falei? ele fazia eco). Não duvido que tivesse ali alguma questão cognitiva, porque não era possível uma pessoa ter um desprendimento desses em relação à sua própria privacidade. Em algum momento, ela pendurou roupa no varal do terraço e suas calcinhas sumiram. Lembro da sua voz, grave e rouca, ecoando no pátio, gritando “Roubaram minhas calcinhas! Safado, safado!” O tempo estava bem ruim naquele dia e eu não duvido que o ladrão fosse o vento, mas, em termos daquele edifício, também não duvido de nada.
Próxima anedota: o porteiro da madrugada. Não sei qual era o nome dele e nunca vi algo do tipo, nem antes, nem depois. Os porteiros da madrugada que eu conheci geralmente encontram algo para fazer ali na recepção, seja com a sua tevezinha ou rádio ou livro, para passar o tempo durante um turno em que não tem muita gente entrando e saindo. Aquele homem não. Na sua pequena ilha, no escuro, das 10h da noite às 6h da manhã, ele ficava ali. Parado em pé. Encarando. Ninguém com quem conversar. Nada para se distrair. Nada para ajudar a passar o tempo. Só contemplando a rua, em silêncio, do outro lado da porta de vidro fumê.
É estranho, né, mas se a gente pensar bem, não tem nada de essencialmente sinistro nisso, claro. Ele podia apenas ser muito quietão ou contemplativo, e eu estaria meramente projetando uma visão sinistra nessa figura como parte de uma necessidade de criar uma aura de terror numa vida cotidiana tediosa. Não fosse o fato de que ele foi demitido após espancar a síndica.
Não sei o motivo, um belo dia eu chego em casa e tem um B.O. colado no elevador. O texto descrevia o acontecido, só que naquela prosa policial semianalfabeta que não dá para entender porra nenhuma. Mas eu nunca mais esqueci da parte final que dizia que, segundo a síndica, as pessoas daquele prédio eram ANIMAIS QUE ESPANCAM.
Agora o que eu lamento dessa situação é que essa filha da puta não devia ter sido espancada no que parece ter sido um ato de violência gratuita contra uma mulher, mas presa. Depois descobrimos que ela vinha desviando dinheiro do condomínio, mais especificamente a parte destinada ao INSS, e por isso o prédio quase foi a leilão. Só não deu merda, porque fizeram algum acordo lá que resultou num condomínio bem mais caro durante uns anos para sanar essa dívida. Não acho que tenha sido esse o motivo do espancamento, no entanto.
E aí teve a história do Roger.
Um belo dia eu desço do elevador e me deparo com aquelas fitinhas policiais amarelas na saída do prédio, algo que eu só tinha visto antes em filme - POLICE LINE, DO NOT CROSS. Do outro lado da porta de vidro do edifício, um cobertor áspero rosado cobrindo alguma coisa. Era um corpo. Perto da escada, uma calça jeans e uma perna prostética. Pergunto para o porteiro o que houve, e ele conta que o maluco ali tinha entrado num dos apartamentos, com uma chave emprestada, e estava usando alguma droga lá. De repente bate uma nóia bizarra e ele sai correndo, descendo as escadas, desesperado. Ele tinha uma prótese na perna, que cai no processo, junto com as suas calças, de modo que ele chega no saguão num estado deplorável. O porteiro o leva para fora do saguão, chama uns policiais que estavam na esquina e, quando eles se aproximam, o cara morre. Saiu até na Tribuna. Seu nome era Roger Alberto Melluso, pelo visto, e ele morreu “rezando no centro de Curitiba”.
Acho que está bom, né? Teve também a vez que o porteiro saiu correndo de madrugada com um porrete na mão, depois que tocou o alarme do açougue da esquina, e o vizinho que arremessava sacos de lixo pela janela, mas isso foi no outro prédio que a gente morou depois. Era um prédio muito melhor no geral (tinha até sobrenome!), mas parece que o espírito da bizarrice me seguiu.
E, certo, todas essas anedotas aconteceram no(s) edifício(s) em si. E que tal dar uma saída para espairecer? É importante, afinal não circulava muito ar no apartamento, e Curitiba pode não ter fama de ser uma cidade quente, mas no verão aquilo virava um forno.
Quando eu era jovem, eu estava com uma namoradinha de adolescência na praça perto do Shopping Estação e fomos expulsos de lá por um grupo de skinheads. Tinha a locadora perto de casa que contava não apenas com um ótimo acervo de filmes cult, mas também com filmes de zoofilia na seção 18+1. Teve uma vez, acho que era na praça Osório, 3 da manhã, que uns pivetes me abordaram e não, não me assaltaram, mas vieram me perguntar se eu tinha clorofórmio. Teve a vez que a gente foi num bar do Largo da Ordem e estava tudo muito agradável, até todos os bares terem que baixar as portas de metal, porque tinha um maluco que passou atirando. Teve a vez do rapaz que veio pedir dinheiro na nossa mesa do Círculo Militar, onde estávamos comendo uns salgados horríveis, e as calças dele caíram durante aquele minuto em que ele tentava, sem sucesso, articular o pedido (ele não estava num estado mental muito bom, não). Teve o caso do Taxi Driver (OK, aí é outro diretor) que passou a viagem inteira falando comigo sobre, digamos, autodefesa e enaltecendo as qualidades da besta enquanto arma para proteger a casa (sim, aquele tipo de arco mecânico para disparar flechas2). Foi uma viagem longa. Teve a vez que eu confrontei um pastor no supermercado do Guadalupe que estava carregando um exemplar dos Protocolos dos Sábios de Sião. Teve a vez do motoboy que brigou no trânsito, puxou uma arma e apontou para geral perto do Wonka e todo mundo teve que se abaixar.
Eu tenho uma certa dificuldade em acertar o tom para contar essas anedotas. Confesso que não tenho uma referência razoável de normalidade, o que eu só descobri recentemente, porque a minha esposa, a Maíra, é uma pessoa muito normal, uma qualidade importante para o equilíbrio do casal. Sei que essas anedotas não são normais por conta da reação das pessoas quando eu as relato em mesa de bar, sobretudo quem não é de Curitiba, mas suspeito que tenha gente que ache que eu estou exagerando ou inventando, o que é uma reação perfeitamente compreensível na internet - ao que eu retruco afirmando que, para cada uma dessas histórias, eu tenho testemunhas! Uma delas aconteceu na companhia do Ismar, inclusive, que também confirma comigo, em sua breve experiência como carioca exilado naquelas terras frias, a natureza lynchiana dessa cidade.
Agora, sobre a questão do tom dos relatos, eu fico sempre com muito receio de dar a impressão de que querer parecer coitadinho. Tipo, “ai, pobrezinho, olha as coisas que ele passou”. Credo. Também abomino a possibilidade de estar passando a impressão de que quero me pintar como alguém muito durão, com a “vivência das ruas”. E, ao mesmo tempo que essas anedotas são engraçadas, por conta do absurdo, não é um riso leve, mas de nervoso. São situações meio traumáticas, que eu já levei para a terapia (junto com a questão de eu ter essa necessidade de transformar tudo em piada, uma necessidade da qual, inclusive, nasceu o Momo Rei). Por isso, o adjetivo “lynchiano” me pareceu adequado. Algo entre Veludo Azul, com aquela temática de mostrar um submundo podre debaixo da fachada idílica do subúrbio americano, e aquela sitcom dos coelhos que o Lynch reaproveitou em Império dos Sonhos.
Vocês vão reparar que eu toquei na questão social. Muitas dessas histórias têm alguma coisa a ver com violência, o que é um dado da vida nos grandes centros urbanos. E Curitiba, apesar de provinciana, é sim um grande centro urbano, com quase 2 milhões de habitantes, fora as pessoas que moram na região metropolitana. Esses espaços são mais violentos, fato. Ao mesmo tempo, tem duas coisas aí: minha experiência puxou muito para essa ameaça de uma violência gratuita, aleatória e sem sentido. Em termos de experiências mais comuns, como assalto, eu mesmo só fui assaltado duas vezes em Curitiba nos 17 anos que eu morei lá, e as duas vezes foram quando eu era jovem e imberbe. A outra coisa é que eu me mudei para São Paulo e, contrariando as expectativas, nunca mais lidei com esse tipo de bizarrice nesse nível.
Pois é, São Paulo é muito maior, mais monstruosa e mais suja, de modo generalizado. Porém, a meu ver, falta ali essa estranheza essencial. É como se em Curitiba tivesse um tipo de filtro, que nem em filme americano quando uma cena se passa no México, que eu não vejo aqui. Em certo sentido, é difícil não pensar num elemento sobrenatural. Talvez o edifício onde eu morei estivesse situado num tipo de vórtice, uma terra amaldiçoada. Ou talvez seja ainda a falta de vitamina D numa cidade que rivaliza com vilazinhas da Noruega em termos de dias de sol por ano, o que deixa todo mundo louco. O sol também é um exorcista.
Ou o problema sou eu3 (daí o subtítulo deste texto: não é possível que essas coisas só aconteçam comigo)… o que não exclui a hipótese sobrenatural, só desloca o seu foco, da cidade para mim. E é claro que estamos trabalhando aqui com o anedótico e a experiência pessoal. Não tenho como provar por A+B que Curitiba é mais ou menos esquisita do que qualquer outra cidade. Imagino que uma inteligência onisciente poderia calcular um coeficiente de esquisitice a partir da contabilização de todos os eventos ocorridos na cidade, uma estatística que levaria em consideração a probabilidade de cada ocorrência, e assim uma abundância de ocorrências aberrantes per capita nos forneceria um dado concreto para botar no jornal: A ciência confirma: Curitiba é a capital mais esquisita do país. Mas isso não vai acontecer.
O que dá para fazer é isso, passar pela experiência, apreendê-la intuitivamente e tentar traduzir essa impressão por via de figuras de linguagem: Curitiba é um palhaço engambelando a Gazeta do Povo; Curitiba é um homem andando pela madrugada com uma faca no bolso; Curitiba é um prédio de luxo com apartamentos giratórios que ninguém pediu, ninguém comprou e acabou abandonado e pichado; Curitiba é uma festa (desanimada) onde um dos convidados tem um pé de bode, mas ninguém diz nada, até o ponto de você começar a duvidar da sua própria percepção. Vocês vão reparar que é nesse espaço metafórico que transita a literatura, afinal. Eu mesmo já tentei explorar um pouco disso no meu primeiro livro de poesia, o Lira de Lixo, mas suspeito que não consegui. Me parece algo a ser explorado melhor por via da ficção, onde temos mais espaço para criar uma ambientação e desenvolver essas paranoias. Enquanto eu não conseguir botar essa essência num romance, vocês vão ter que me aguentar aqui neste formato mesmo.
Eu não vi os filmes em si, mas registrei as capas em fotos do meu celular… que eu também não vou compartilhar, porque da última vez que eu postei no tuíter eu fui banido (era O comedor de égua, estrelando Toninho).
Entendo que, tecnicamente, o nome mais correto é “setas” ou “virotes”.
O que me sugere que talvez não seja o caso é que, recentemente, eu comentei algumas dessas anedotas no tuíter e alguém me contou da vez que ele esteve num certo bar dançante da madrugada e havia sangue no chão do banheiro, mas ninguém estava dando a menor atenção para esse fato.
Amigo eu ri desse texto da semana como uma pessoa que viveu em duas cidades loucas.
"Ou talvez seja ainda a falta de vitamina D numa cidade que rivaliza com vilazinhas da Noruega em termos de dias de sol por ano, o que deixa todo mundo louco. O sol também é um exorcista." - O feudo no qual e nasci e agora retornei, Petrópolis é esse naipe de não ter muitos dias de sol. Aqui também é todo mundo desregulado das ideias e tem fama de ser uma cidade do sul perdida no Rio ( para você ver o naipe da coisa). A outra é Cascavel que tem fama de ser uma mini Curitiba e vi alguns vários absurdos que só o Paraná pode me proporcionar. Então fica tranquilo que não é só com você kskskskssks
Eu ri de um modo um pouco descontrolado da descrição do porteiro-frankenstein-robocop. E Curitiba, pelo pouco em que estive lá, me parece um desses casos de vórtices do mundo. É uma vibe meio parecida, paradoxalmente, com Goiânia (pelo dinheiro do agro? Pelo ar de roça gigante? Não sei dizer).