M. D. #18 – E quando o poema é banal?
Ou: sobre o pacto/ilusão da intencionalidade e estética como projeto
Assim, gente, a Mercurius Delirans é uma newsletter pequena, certo? E a edição #17, em que eu discorri sobre romancistas que escrevem de um modo tão enfadonho que até parecem certos vampiros energéticos da teledramaturgia contemporânea, teve uma repercussãozinha que não é nada de mais, mas foi algo meio sem precedentes por aqui. Parte disso, eu vou atribuir ao gosto pela maledicência: the internet is made of demons, afinal, como é o título de um artigo da Damage Magazine. Algumas pessoas me pediram para dar nomes aos bois, mas não pretendo fazer nada do tipo, porque, como uma pessoa que nunca nem fez crisma, eu nunca cheguei formalmente a negar Satanás e suas obras. Se nem essa inimizade eu fiz, que dirá brigar por causa de preferência literária.
(Pensando agora na expressão “Satanás e suas obras”. Satanás e sua bibliografia.)
Mas tem também o motivo mais palpável de que, da última vez que eu fiz uma crítica sincera em público, apontando problemas na obra de um poeta português contemporâneo (um pouco mais velho que eu, mas não tão bem cuidado), ele me mandou um e-mail de 500 palavras me xingando. Depois fomos os dois convidados para um mesmo sarau na sede do PSOL no Largo da Ordem (pois é), e ficou um climão.
Para além da maledicência, porém, eu acho que deu para tocar num ponto interessante naquele texto e gostaria de poder elaborar mais algumas coisas futuramente sobre prosa literária. Só que, antes disso, vale lembrar que eu vim mesmo foi da poesia, e acho que seria bom pensarmos agora nesse outro lado (por mais que, nesses casos, não dê lá muito público). Certo, tem uma receita para escrever romances que eu considero maçantes: a tentativa fracassada de conduzir uma narrativa centrada no umbigo de um personagem que, no fim, não é tão interessante quanto o autor pensa que é. E, na poesia, como seria?
OK, tem muita gente que preferia comer vidro a ler poesia. Nesse caso, infelizmente eu não vou poder contar com a opinião de vocês, porque, né. E, sim, gosto é uma coisa muito subjetiva etc, etc. Vocês sabem já. Isso aqui é só uma tentativa de jogar umas ideias no ar e ver se aparecem padrões.
Primeiramente, eu gostaria de direcionar a sua atenção a um poema do Marcelo Sandmann. Não porque ele seja um exemplo de poema enfadonho ou banal, mas porque eu acho que condensa muito bem aqui certas coisas que eu quero apontar, tendências de pensar a diferença entre prosa e poesia, ou, pelo menos entre a prosa romanesca que a poesia lírica que é predominante no modelo literário atual:
Um bom poema é feito tiro de misericórdia. O poeta não tortura seu leitor como faz o prosador, linhas e dias a fio. É pá-buf! O corpo caído: o pingo na testa
Ou seja: a poesia tende a operar com uma certa economia da linguagem. O romancista pode ficar páginas e páginas apresentando um personagem para que, capítulos depois, aconteça alguma coisa que vai arrancar da gente uma reação emocional justamente por a gente entender quem é aquela pessoa, por já termos uma certa conexão. O poema precisa obter um efeito assim sem essas preliminares todas. Pensa em “Sítio”, da Cláudia Roquette-Pinto, que vocês vão entender.
Pode ir lá ler o poema e voltar aqui depois, eu espero. Vale a pena.
Nesse contexto, cada palavra conta, e muitas vezes, menos é mais. Para uma discussão sobre isso, recomendo o capítulo de O Castelo de Äxel, do crítico Edmund Wilson, em que ele faz uma comparação entre Percy Shelley e Musset. O verso “O world! O life! O time!”, de Shelley é mais conciso, mais elíptico, do que o “J’ai perdu ma force et ma vie” de Musset, embora os dois fossem poetas românticos e estivessem expressando um sentimento parecido. Logo, justamente por isso o poema de Shelley tem uma maior intensidade, porque o peso das palavras tende a se diluir com um verso mais caudaloso.
Até aí tudo bem. Vamos deixar isso reservado por enquanto e passar para uma outra coisa. É, nosso argumento hoje vai ser em etapas. Vamos falar agora daquele experimento famoso do professor Stanley Fish.
Acredito que todo aluno de Letras esteja familiarizado com esse exercício, mas vou resumi-lo rapidinho aqui para quem fez algo mais útil da vida não fez os sacrifícios necessários pelo conhecimento proibido e não o conhece: em 1971 Fish pregou uma peça em seus alunos. Tendo se reunido com alunos de linguística numa sala e deixado uma lista vertical de nomes de autores no quadro-negro (Jacobs-Rosenbaum, Levin, Thorne, Hayes, Ohman), ele depois se reuniu com um outro grupo de alunos no horário seguinte, que estudavam poesia cristã do século XVII, e lhes disse que aquela lista era um poema religioso. Seus alunos, por sua vez, já equipados com o aparato teórico necessário para a interpretação de simbolismo religioso na poesia do período estudado, logo começaram a identificar elementos poéticos no que era apenas uma lista de nomes jogados ao acaso1. O experimento dele é discutido em seu texto “How to recognize a poem when you see one” e foi fundamental para a elaboração do seu conceito de “comunidades interpretativas”. Tem mais coisa aí, mas se quiserem mergulhar no assunto a partir da minha perspectiva, eu começo a falar disso a partir da página 487 da minha tese.
Uma conclusão possível desse experimento é o de que a poesia está nos olhos de quem vê. E, de fato: o modo poético de leitura que praticamos hoje é o que parte do pressuposto de que há um insight central no poema que age como seu princípio organizador e confere sentido a tudo. Há uma pressuposição radical de intencionalidade naquelas palavras e na ordem em que elas se apresentam. E é por isso que cada palavra ali conta.
A ironia é que, quando tiramos o foco do poético de quem escreve para quem lê, então a frase “isso não é poesia” deixa de fazer sentido, porque absolutamente qualquer coisa pode ser poesia. E: realmente, qualquer coisa pode ser poesia, não só o que se apresenta em versinhos. Qualquer coisa pode ser interpretada com esse olhar que pressupõe uma consciência organizadora por trás do que está a nossa frente e atribui a tudo um significado associado às intenções dessa consciência. Deslocado da literatura, é um modo místico de enxergar a realidade. Deslocado do misticismo, tem-se a psicose paranoica. Mas o poético é o território onde é possível exercitar esse lado da imaginação sem cair no patológico.
Vamos dar um exemplo para deixar as coisas mais claras. Bandeira em “Poema tirado de uma notícia de jornal” faz exatamente isso. Tem uma notícia do jornal Beira-mar, edição natalina de 1925, sobre um feirante que caiu bêbado e morreu afogado na Lagoa Rodrigo de Freitas, que Bandeira pega e remove de seu contexto jornalístico, conferindo-lhe uma moldura que diz “leia isto com uma visão poética”. E então vários fatos que, na “realidade”, são mera casualidade, tipo o nome João Gostoso e a sua casa sem número na favela da Babilônia, ganham camadas adicionais de sentido. No plano da forma, mesmo o comprimento dos versos serve para acrescentar sentido também2. Em poemas mais clássicos, essa sinalização da parte do poeta de que aquela obra é fortemente intencional deriva da opção de usar recursos como metro e rima, que distinguem a poesia mais tradicional do discurso cotidiano – afinal, ninguém fala rimando. Na poesia em verso livre, há outros recursos para transmitir isso, como a variação de comprimento dos versos, enjambements e até mesmo o uso idiossincrático (pense em Emily Dickinson) da pontuação.
Então, sim, qualquer coisa pode ser lida com um olhar poético, encontrando sentido e coerência em todos os detalhes daquilo que se apresenta a você, com suas recorrências, contraposições e ironias acidentais. O jornal, a sequência de ruas pelas quais você passa a caminho do trabalho (eu já trabalhei num lugar que eu chegava após passar pela rua Verbo Divino), a sua caixa de mensagens em alguma rede social, perfis do Tinder e sugestões de busca do Google3. Mas existem certas obras que são escritas (pelo menos em tese) para serem lidas assim. E isso, óbvio, são os poemas. Não digo nem a literatura de modo geral: como comenta Bakhtin, ler um romance como se fosse um poema é uma forma de achatar a experiência romanesca. É o poema que serve para isso, e só.
E tem um tipo de experiência que a poesia é ótima em oferecer que é quando outra pessoa lê o seu poema e encontra coisas ali que você mesmo que escreveu não reparou, mas que fazem sentido com o projeto que você tem do poema. Nessas horas a gente finge que é isso mesmo, que era nossa intenção colocar aquilo ali, que essa era a ideia desde o começo. A pegadinha: embora soe muito falastrão fazer isso, a poesia é o espaço para essa possibilidade. Você, indivíduo de carne e osso, com CPF e tudo o mais, pode não ter pensado nessas possibilidades que o público-leitor encontra, mas o seu eu-lírico sim. O poema é o lugar da intencionalidade radical. Faz parte do jogo, e há uma relação de toma-lá-dá-cá: quem escreve sinaliza que aquela obra está receptiva a esse tipo de leitura, e quem lê vai aproveitando a deixa para ir traçando conexões.
Infelizmente, nem todos os poetas receberam esse memorando. E, claro, para que esse pacto ou ilusão de intencionalidade se sustente, é preciso um esforço dos dois lados. Se o público-leitor já está com a cabeça tão massacrada pela literalidade estúpida dos tempos em que vivemos que não consegue fazer as associações simbólicas necessárias para ler um poema, aí não é culpa dos poetas. Mas quando poetas não fazem a sua parte para, pelo menos, parecer que dá para identificar essa intencionalidade, aí fica muito, muito feio. Quando as pessoas começam a reclamar demais de poemas que “parece que a pessoa escreveu qualquer coisa e quebrou em verso de qualquer jeito”, essa é uma forma de dizer que elas não estão conseguindo identificar essa intencionalidade no poema.
E isso me leva à resposta da pergunta que está no título desta edição. O poema é banal quando o poeta não colabora para a leitura poética. Você chega procurando formas de exercitar essa leitura da intencionalidade radical, mas não tem nada lá. O negócio é óbvio e unidimensional, mais raso que um pires. E por isso muito adequado a um público de mentalidade literal.
Agora entramos na parte da maledicência.
Mais uma vez, não vou citar nomes (tirando o R. M. Drake, foda-se esse maluco), mas todo o fenômeno da instapoetry, tanto na gringa quanto no Brasil, é basicamente isso: essa geração de poetas millennials e gen Z que começou a escrever no rastro da Rupi Kaur (que é alguém que a gente poderia malhar aqui, mas, piadas à parte, eu até reservo a ela uma boa vontade que não se estende aos seus imitadores) para um público formado pelas redes sociais, sobretudo o Instagram, esse lugar diabólico sob os grilhões do algoritmo nefasto do Zuckerberg, mas tem também o TikTok, o Tumblr etc. E aí a figura, já amaldiçoada do poeta, cruza com a do coach e influencer, mil vezes mais amaldiçoados.
É, via de regra, um misto de senso comum, autoajuda, sentimentalismo e jargão de RH, exprimido de um modo que não desafia ninguém e que soa obviamente falso e inautêntico, feito perfil de xoxomídia de empresa que se faz de legalzona para se enturmar. Mas, assim como o xoxomídia de empresa, embora o truque seja óbvio, as pessoas acabam atraídas e esse tipo de coisa faz muito sucesso.
No fim, o pior é que nem dá para falar muito mal de instapoetry, porque até as críticas que dá para fazer são batidas, todo mundo já fez, e a gente acaba soando amargurado e ressentido. Mas é a mais pura banalidade e, pior, sequer tem algo de novo aí. Arrisco dizer que muitos poetas, até poetas normalmente bons, já fizeram poemas banais, como dá para ver na galeria do perfil badpoetrybr4. Tem vezes que a gente simplesmente não está inspirado ou superestima a nossa genialidade. Acontece. A instapoetry pega esses momentos e faz disso a norma. E a coisa vende, porque, né. Se o algoritmo do Zuckerberg bancou a ascensão da extrema-direita mundial, causar esse estrago na literatura é brincadeira de criança.
E, sim, vou falar em termos de estrago. O problema da banalidade na poesia não é apenas a questão de qualidade ou juízo literário. Não é só que esses poemas sejam ruins (até porque poemas muito ruins podem ser interessantes por outros motivos, como pretendo comentar em breve numa edição futura da newsletter), mas eles apontam para e reforçam um certo projeto estético que é coletivo.
Todo poema faz isso, claro5. A poesia é um campo agônico, onde estéticas convergem e divergem, disputando e buscando conquistar espaço. Pense, por exemplo, no florescimento das vanguardas do começo do século XX. Cada uma dessas vanguardas tinha algo a dizer – ou, me corrigindo, tinha uma direção na qual desejava conduzir a imaginação do público, cada uma com suas filiações e rupturas em relação ao que veio antes, bem como suas aproximações e afastamentos entre si.
Com o sucesso de uma poética que unanimemente não se presta à leitura poética, porque é rasa demais para isso, podemos perguntar: em que direção a nossa imaginação está sendo conduzida? E em que medida isso não é sintomático de uma série de problemas da cultura do capitalismo tardio, que exulta na monocultura, inclusive do imaginário?
Enfim, pesei o clima aqui. E agora estou meio constrangido, porque acho que não dosei direito o equilíbrio entre ironia e maledicência, aí o resultado saiu meio embaraçosamente sincero.
prometo me esforçar mais na próxima vez.
E aí agora eu muito falastronamente aproveito a oportunidade para divulgar meu livro. Como anunciado na última edição extra, Minguante vai sair pela Ofícios Terrestres em 2025 e a campanha de financiamento coletivo/pré-venda já está rolando: https://benfeitoria.com/projeto/minguante. Eu falei, né, que o campo da poesia é agônico. Preciso vender meu peixe. No mais, meu aniversário está chegando (sério, é dia 2).
Assinar a Mercurius Delirans literalmente não custa nada e eu não tenho planos de monetizar a newsletter tão cedo. Se eu te ajudei a se distrair um pouco das dores da existência neste plano físico e você quiser dar uma força, sempre pode comprar meus livros… incluindo o Minguante.
Eu, pessoalmente, duvido que eles tenham sido enganados mesmo a achar que aquilo era um poema do séc. XVII, dada a falta de recursos formais, e imagino que tenham ido na onda, porque, né, é bom quebrar a rotina às vezes. Mas deixa quieto.
Vide a leitura que o Fiorin faz desse poema em seu Introdução ao pensamento de Bakhtin.
No caso desses últimos exemplos, tem poemas de fato da Angélica Freitas e da Maíra Mendes Galvão construídos a partir dessas coisas. E, não, antes que vocês possam achar que eu vou criticá-las, eu não acho ruim, pelo contrário. Esses poemas funcionam muito bem.
Ao contrário do que se pensa, eu NÃO sou o curador do badpoetrybr.
É possível que esses poetas finjam não ter uma reflexão crítica sobre o que estão fazendo, como parte de uma estratégia de marketing que é explorar essa aparência de inocência e ingenuidade, de uma poesia sincera que vem direto do coração, em oposição ao que é excessivamente cerebral e conspurcado pela academia e seu mau hábito de pensar as coisas. E aí entra toda a questão do anti-intelectualismo etc e tal. É possível também que eles (ou alguns deles, pelo menos) não tenham essa reflexão de fato, mas eu prefiro apostar na artificialidade. Tudo é aparência nas redes sociais, afinal.
"Deslocado da literatura, é um modo místico de enxergar a realidade. Deslocado do misticismo, tem-se a psicose paranoica." Lindo trecho. Amo suas maledicências, faz mais
Gosto de uma maledicência literária, mas gosto ainda mais de uma newsletter tão rica em análise/teoria poética. Maravilha!