M. D. #27 – Davi Brito, o milkshake duck e as dinâmicas sociais de playground
Ou: entre o parabéns e o bater palmas pro louco dançar
Primeiramente, indo na sequência contrária à do título: acho que o que eu vou descrever é uma experiência comum dos tempos de escola. Quando eu era criança, ali entre a primeira e quinta séries, tinha um menino na minha turma que era meio... bagunçado. Ele não se comunicava direito, suas notas eram ruins, era sempre o último a terminar de copiar o quadro ou fazer as atividades, suas coisas ficavam espalhadas ao seu redor. Óbvio que, né, meados dos anos 90, ninguém falava em neurodivergência, mas fica meio evidente agora, olhando em retrospecto. Porém, eu encontrei o perfil dele anos depois, quando estava procurando esses ex-colegas no Facebook, e descobri que virou conspiracionista de extrema direita, então, por mais que eu também esteja investigando a minha neurodivergência, não vou pegar a mão dele, não.
Na gringa, ele seria o que chamam de “the weird kid”. Tem um post com trocentas respostas no Reddit intitulado “What made the weird kid at your school, the weird kid?” e ele era o weird kid do meu ensino fundamental I. Um elemento recorrente das anedotas em torno desse personagem arquetípico é o moleque comer algo que não devia - uma das respostas ali no Reddit fala em comer minhoca, outro comia casquinha de ferida, essas coisas. Eu não lembro se teve algum evento marcante de o moleque esquisito dos meus tempos escolares ter comido algo nojento... fico com a impressão de que rolou sim, mas a minha memória não quer colaborar. Em todo caso, apesar da minha memória falha, é sempre um evento quando tem um moleque na turma que come algo nojento, porque é o momento em que ele ganha atenção. Todo mundo olha, com aquele misto de nojo e fascínio, como o público em miniatura de um freak show vitoriano. O que ele ganha em troca nesse processo é um tipo torto de popularidade. Ninguém passa a gostar de fato do moleque esquisito, claro, mas ele faz algo que gera entretenimento e, nessa etapa da vida, ainda mais considerando a neurodivergência, provavelmente falta a percepção de estar sendo humilhado.
Salto agora para o tema do milkshake duck. O termo vem de um tuíte do perfil pixelatedboat de 12/6/2016 que diz: “The whole internet loves Milkshake Duck, a lovely duck that drinks milkshakes! *5 seconds later* We regret to inform you the duck is racist” (“A internet toda ama o Pato do Milkshake, um pato adorável que bebe milkshakes *5 segundos depois* Lamentamos informar que o pato é racista”). Acho que eu não preciso me prolongar demais aqui com a definição do conceito. Um milkshake duck é qualquer figura que alcança os seus 15 minutos de fama memética na internet por qualquer motivo e logo depois, no auge do entusiasmo coletivo, cai em desgraça, porque descobrem algum podre dessa pessoa. Exemplos não faltam, e o termo está até incluído no site Dictionary.com.
Por fim, o Davi Brito... para quem conta com a bênção da ignorância, segue a apresentação: Davi Brito era um motorista de aplicativo1 de Salvador que, aos 21 anos, ganhou o prêmio do BBB 24. Tudo que eu sei sobre ele foi contra a minha vontade, mas preciso reconhecer que ele fez por onde, porque desconheço os nomes de todos os outros participantes da edição anterior do reality show e acho que a única pessoa da edição atual que eu conheço é a Gracyanne Barbosa. Ele já causou muita confusão desde antes de terminar o programa, por causa das tretas com a sua ex, que parece que está processando ele para ter direito à sua metade do prêmio, mas teve um monte de outras coisas que ele aprontou depois. Toda semana tem algum malapropismo dele (“que dure em quanto” é o meu favorito), ele foi pego numa blitz dirigindo bêbado, sua outra ex perdeu o bebê (o que é um acontecimento trágico, mas virou circo no pior estilo loss.jpg) e ele explodiu um chuveiro tentando mexer na fiação com uma faca de serra sem desligar a chave geral (de onde tiramos a imagem marcante que ilustra esta edição). Em resumo, é uma figura com uma capacidade cognitiva bastante questionável, e por isso a internet não consegue parar de acompanhar.
E aí eis que ele acabou de virar réu por ameaçar a sua ex (não sei qual delas, nem vou procurar saber) com uma arma de fogo. Para muitos, ao que tudo indica, foi o momento em que a piada perdeu a graça. No entanto, eu aqui preciso citar o meu amigo Petter, que explicou no Blue Sky a coisa com uma eloquência ímpar: Nunca houve uma “piada” envolvendo Davi Britto, todos nós estávamos simplesmente contemplando a implosão de uma subjetividade movida pelo fluxo destrutivo das hashtags tal como podemos contemplar um vulcão em erupção ou uma parede de gelo se desprendendo de um iceberg. Pura destruição, puro fluxo.
Assim sendo, eu acho que a gente precisa conversar sobre a natureza do fenômeno fama na internet, porque fico com a impressão de que havia algo aí que eu acreditava que era consenso, mas parece que muita gente não recebeu o aviso: Toda a internet é um grande parquinho. Toda fama de internet é, senão um freak show de fato, pelo menos um freak show em potencial. Ninguém é genuinamente valorizado pelos seus talentos ou por algo positivo em sua personalidade. Você está lá tocando a sua vida e, por algum acaso cruel, tal qual um deus grego nos mitos descendo do céu porque decidiu que precisa urgentemente te enrabar (pobre Ganimedes), algo que você fez vai parar na atenção da ágora da internet... e aí fudeu.
Quem está já começando a ter problemas de coluna vai lembrar do caso do Star Wars Kid, um meme avant la lettre do começo dos anos 2000, que consiste em um vídeo de menos de 2 minutos (a internet da época não suportava mais do que isso) durante os quais um adolescente canadense de 14 anos chamado Ghyslain Raza imita os golpes de sabre de luz de Darth Maul em Star Wars: Episódio I. Eu mesmo lembro de ter visto o vídeo no laboratório de informática no ensino médio, entre 2003 e 2004, onde também assistíamos Happy Tree Friends. Era engraçado? Obviamente. Alguém achava o coitado do Raza legal? Não. Era chacota. E o Raza sabia disso, tanto que rolou processo e ele recusou vários convites para talk shows, porque não queria que a coisa virasse circo (essa informação está na Wikipedia, e tem um artigo bem interessante no Mashable também sobre isso).
Essa para mim é a interação internética quintessencial nesse grande parquinho, embora o próprio Raza não seja em si o alvo quintessencial, por demonstrar uma qualidade que a maioria dos envolvidos não demonstra: autoconsciência e autocontrole. Quando uma pessoa vira meme, as pessoas estão rindo dela, não com ela. Tem um outro caso de uma criatura, cujo nome prefiro omitir, que fez sucesso (?) a partir do final de 2012 nas redes brasileiras e que alguns sites chamaram de “queridinha da internet” (a Wikipedia também a descreve como “musa dos gays”). Recentemente ela reapareceu pedindo dinheiro, porque, embora tenha aproveitado sua popularidade online para fazer dinheiro à época, claramente não soube administrar as coisas e deve ter imaginado que fosse continuar relevante para sempre… ou que, pior, essa popularidade fosse devida a algum tipo de admiração de fato e não a esse sentimento misto de horror e fascínio que a gente tem ao ver o moleque esquisito da sala comer uma barata.
Do Star Wars Kid, vinte anos atrás, para os “queridinhos e queridinhas” da internet hoje, a diferença é que, em algum momento do caminho, tornou-se possível monetizar a fama na internet. Por um lado, podemos ver isso como um tipo de compensação, tipo toma aqui esse dinheiro em troca da sua dignidade (a gente já troca a dignidade por muito menos em muitos empregos por aí, afinal). Por outro, é um catalisador para a autodestruição, um pacto com Mefistófeles. É como um hamster que aperta a alavanca, toma um choque, mas ganha comida. E nada é mais deprimente do que alguém que já fez fama por motivos dúbios tentar desesperadamente todo tipo de humilhação para se manter relevante.
Quanto ao caso Davi Brito, houve quem invocasse o milkshake duck aqui, mas eu acredito que não se aplique… aliás, não se aplica a nenhum participante de reality show, na verdade, porque o milkshake duck pressupõe uma figura que cause uma decepção por motivos de aberração moral… e todo o propósito de um reality show é acompanhar a degradação humana.
Vou conceder a possibilidade de exceções, mas no geral você tem que ter um alto potencial de podridão para ser escolhido para participar de um BBB. E todas as dinâmicas da casa, entre a privação de sono, a fome e a falta de distrações estão lá para aumentar a pressão psicológica e induzir o conflito. Ninguém assiste uma coisa dessas, nem de graça, tampouco pagando o pay-per-view, para ver um grupo de pessoas felizes e bem resolvidas conversando de boas ou resolvendo conflitos racionalmente. Todo mundo quer ver baixaria, quer ver gente com a inteligência emocional de um pinscher e a cognição limitada ficar de tramoia e mandar o outro tomar no cu por causa de bobagem. É isso que produz o tal “entretenimento”, a julgar pelo modo como o termo era usado no tuíter. Mas a produção do BBB é covarde e tenta jogar um verniz de virtude com aquele discurso meio coach de motivação, de “garra” e o escambau… e pior que tem gente que compra! Tem gente que vira fã de ex-BBB, sem qualquer ironia.
Talvez seja possível me acusarem de estar pegando excessivamente pesado, talvez até de moralismo. A questão é que eu não sou contra chafurdarmos na lama da degradação humana nas horas vagas. Tem um reality show chamado MILF Manor, cuja premissa é juntar 8 lobas solteiras e seus filhos num mesmo lugar, e tem uma prova em que elas precisam apalpar os jovens para tentar descobrir qual deles é o filho delas. Quem cria um negócio desses sabe o que está fazendo. Quem assiste sabe o que está assistindo. É ao tentar passar um verniz de virtude em cima dessas coisas que a gente adentra o terreno do desonesto.
Aí, quando essa corrente de admiração equivocada induzida pelo pedro-bialismo cruza com a dinâmica de parquinho da internet, o resultado é uma chacota quântica: a fama se dá num estado de indecisão, ao mesmo tempo admiração e chacota, até colapsar em um dos dois (no caso, após ser cometido um crime). E, ao julgar por relatos de gente que vem acompanhando há tempos as patacoadas do ex-BBB, ele mesmo habita esse lugar de indecisão entre o ingênuo desprovido de autoconsciência, com o qual seus fãs legítimos se identificam, e o manipulador que faz bizarrices, porque sabe que é o que chama atenção, numa tentativa de se manter relevante. E nesse salão de espelhos, não é só o público que fica perdido, mas o palhaço também corre esse risco.
No fim, o ponto onde eu quero chegar é: não é que perdeu a graça quando Davi Brito cometeu um crime. O crime é o clímax da trajetória dele. E negar isso é confessar a própria desonestidade ou um grau de ingenuidade tão perigoso que é incompatível com a existência no Brasil da década de 20.
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Hilariamente, quando buscamos o nome dele no Google, o site ainda o apresenta como “motorista brasileiro”, o que é um título bastante peculiar.
Esse frame do Davi daria uma capa de disco, já enxergo o Advisory no canto inferior direito.
quando você cita a queridinha da internet de 2012 (que honestamente não sei quem é) me lembro de cara da menina do "puta falta de sacanagem" do show do restart que largou os estudos aos 16 anos para viver de internet já que virou meme - em um mundo que o conceito de meme ainda era um bebê engatinhando no chiqueiro - e óbvio que ela não conseguiu nada com isso. Se fosse hoje, ela já teria participado de 2 edições da fazenda e um power couple. Ela era muito a frente do seu tempo....