Um detalhe interessantíssimo da prosa literária é que definir o que é boa prosa é meio... escorregadio, meio relativo. Claro que não existe objetividade em termos de literatura, mas o ponto aonde eu quero chegar nesta edição está um pouquinho além. Um crítico literário diz muito de si mesmo pelas suas avaliações, revelando ali seus próprios valores morais e estéticos, preconceitos inclusive, o que permite a gente entender o que esperar de cada um. Por isso, embora estejamos sempre no território da subjetividade, “subjetivo” não quer dizer “aleatório”, e há padrões que emergem.
Quando se é inexperiente e falta repertório, por exemplo, a gente pode ficar com a impressão de que a boa prosa é aquela que é rebuscada e cheia de palavras difíceis - o que até pode ser o caso, mas depende. E às vezes, nesse furor, as pessoas acabam confundindo “bom” com “prolixo”... ou, nos casos mais graves, chegam a achar que escrever bem é escrever igual publicitário1 (credo) ou advogado (credo²). E falta de repertório aqui não significa falta de quantidade. É ótimo se você é uma pessoa que tem a capacidade, tempo e disposição para ler um livro de 700 páginas numa semana. De verdade. Mas, acho que não deve ser polêmico afirmar que, se a sua dieta consiste em obras apenas de um único nicho literário, o seu repertório vai continuar pobre, a contrapelo da quantidade, tão bitolado pelas tendências de uma única estante da livraria que a sua cabeça explode ao se deparar com algo que destoe daquilo. Se você só lê best-seller de um gênero ultraespecífico, não faz mal pegar algo mais desafiador de vez em quando. Mas também quem só lê o que é canônico perde a produção daquelas figuras meio aberrantes que escapam ao cânone (já que a disputa pela definição do cânone é isso, uma disputa, e as coisas estão sendo sempre reescritas), para não falar nada das obras de outros países que não tinham tradução até pouco tempo.
É por esse motivo que é importante não apenas ler em grande quantidade, mas também ampliarmos nossos horizontes ao lermos obras de tempos e lugares diferentes, tanto de nomes hegemônicos quanto marginais, e que fazem coisas diferentes com a linguagem. Ampliando um pouquinho nosso repertório, eu entendo que a gente passa para a conclusão, um pouco mais madura, de que a boa prosa, num romance, é aquela que serve aos propósitos, ao projeto, do livro. E isso, claro, não é algo escrito em pedra. Cada romance vai querer fazer algo específico - logo, a natureza do texto que é mais adequada para esse propósito há de variar.
Uma prosa excessivamente rebuscada pode até ser interessante, mas ela faz mais sentido na voz de um personagem pedante, por exemplo, como um Humbert Humbert da vida, ou de um narrador em terceira pessoa colado a um esteta decadente como Dorian Gray, do que na narração de um sujeito mais brucutu (a não ser que o efeito almejado seja justamente a ironia dessa discrepância, como é a piada da carta pras icamiabas que aparece no meio de Macunaíma). É uma caricatura muito grosseira do que é literatura achar que todo mundo tem que escrever em “português correto”, e inclusive não é de hoje que vemos livros em que o uso de variantes desprivilegiadas do idioma é uma decisão deliberada, até mesmo de uma perspectiva política. Quem reclama disso em pleno ano de 2025 é absolutamente ignorante.
O difícil é que encontrar o tom certo não é apenas uma questão de você chegar no que acha que é o estilo mais bonito e aí aplicar isso de forma automática. Aliás, é por essa linha que segue uma crítica como a que o Lucas Litrento faz a respeito de Torto Arado, em um texto de 2022 da revista Acidente. Para o Lucas, o livro tem o problema de contar com três narradoras que, apesar de serem muito diferentes, apresentam vozes parecidas e repletas de hábitos de linguagem que remetem a narradores oniscientes em terceira pessoa (às vezes com cacoetes de linguagem burocrática). Mas eu não estou aqui para arranjar polêmica, só acho que a crítica do Lucas é interessante, trata do que nós estamos falando aqui e vale muito ser lida (link aqui).
Só que essa ideia da natureza, digamos, mercurial da prosa romanesca bate de frente com uma noção mais comum entre as pessoas que não são grandes leitoras, mas possuem um certo fetiche por cultura... e aí, como resultado, gostam de colecionar citações inspiradoras. Em algum momento vou falar disso também por aqui, porque é um hábito que gera umas situações engraçadas. Mas essas ideias entram em conflito, porque um grande romance pode conter asneiras imensas sem que elas prejudiquem o livro, se essas asneiras imensas tiverem uma função no projeto, se ajudarem a caracterizar o personagem, por exemplo, muito embora não sirvam para emoldurar e colocar na parede como frase profunda. Uma pessoa dessas que gosta de citação sem contexto pega um livro como Retrato do artista quando jovem e tem um AVC ao se deparar, na primeira página, com “Era uma vez, e foi muito bom dessa vez que a vaquinha mumu veio descendo a rua (...) Quando você molha a cama, primeiro é morno, depois fica frio”2.
E aí eis que eu estava terminando de ler um livro de uma autora que eu gosto demais, The Biographer’s Tale, da A. S. Byatt3 (autora de Possession, um dos meus livros favoritos da vida), quando esbarrei num trecho que achei especialmente didático como ilustração desse princípio, sendo um parágrafo muito bem escrito, na minha opinião, mas talvez não pelos motivos mais óbvios. Assim, considerando que a Byatt é uma autora extremamente subestimada, a meu ver, e eu precisava de um exemplo para ilustrar essas reflexões que eu tenho trazido para cá sobre o fazer romanesco nas últimas edições da newsletter, resolvi matar dois coelhos com uma caixa d’água só.
Primeiro, o contexto: publicado em 2001, The Biographer’s Tale (literalmente O conto do biógrafo, ainda sem tradução para o português - alô, editoras) é um romance pós-moderno pra caralho. É narrado em primeira pessoa pelo seu protagonista, o acadêmico Phineas G. Nanson (o livro todo se apresenta como um caderno com as suas anotações). Em resumo, o que acontece é que, cansado do que ele percebe como as relatividades todas da vida acadêmica centrada no pós-estruturalismo e sua bibliografia de Foucault e Lacan, ele decide voltar a sua pesquisa para algo que seria mais sólido, na cabeça dele, que é o gênero da biografia. Assim, pela indicação de seu orientador, Ormerod Goode, ele se interessa pela obra de um biógrafo chamado Scholes Destry-Scholes (SDS). Após ler uma biografia de SDS sobre Sir Elmer Bole, um explorador vitoriano que fez de tudo um pouco ao longo de sua vida extraordinária4, Phineas decide fazer a coisa mais meta que poderia fazer, que é escrever uma biografia do biógrafo. SDS era, por si só também, uma figura curiosa, que aparentemente morre num turbilhão do mar norueguês chamado de maelström. À época de sua morte, ele trabalhava numa biografia tripla, jamais concluída, e seus biografados eram, incongruentemente: o taxonomista sueco Carlos Lineu, o dramaturgo norueguês Henrik Ibsen e o polímata inglês (e inventor da, credo, eugenia) Francis Galton.
O que une essas três figuras é um mistério, e o porquê de SDS ter decidido biografá-los em conjunto serve de mote para as aventuras do nosso protagonista, a quem falta qualquer coisa de sólido para sequer começar a pesquisa. Nas suas idas e vindas, ele confere com a biblioteca, descobre o lugar onde SDS nasceu (o que não o ajuda em nada), frequenta o museu da Linnean Society, arranja um emprego numa agência de viagens e conhece a sobrinha de seu biografado, Vera, uma técnica de radiologia, com quem ele começa um caso amoroso, enquanto os dois tentam organizar a tralha que SDS deixou (entre cartões variados com trechos fragmentários da biografia em progresso, fotografias avulsas e bolinhas de gude com nomes próprios). No museu, ele conhece Fulla, uma acadêmica sueca especialista em taxonomia de abelhas que lhe oferece uma visão da sua calcinha logo de cara, quando ela vem acudi-lo depois de ele desmaiar após uma queda de luz no museu. Phineas é uma figura meio sensível, meio fussy, e que fala empolado, por isso o livro inteiro eu li, na minha cabeça, com a voz de Niles Crane (David Hyde Pierce), o irmão do protagonista da série Frasier. Phineas logo mais passa a ter um caso com Fulla também.
Diferente de outros triângulos amorosos, essa questão não chega a constituir algum tipo de conflito ou dilema para o nosso herói, não é essa a ênfase da história. Mas o contraste produz efeitos interessantes.
E assim chegamos ao parágrafo que eu queria trazer aqui, que me pegou e me pareceu particularmente exemplar. Cito-o no original:
We went to bed in the dark. She said she did not want me to see her face all swollen, and as a result she did not see Fulla's love-bites. I felt with my lips and fingertips the slow tears still welling between her closed eyelids. I noticed, I thought that Vera's scent, which I thought of as silvery, combined quite differently with my own from the way Fulla's did, which I thought of as golden. How did I get to these synaesthetic metaphors? Vera (my love, my darling) is a darting silver fish, a sailing moon in an indigo sky, quicksilver melting into a thousand droplets and recombining. Fulla is gold calyx strenuously spread in gold sunlight, Fulla is golden pollen clinging to bee-fur, Fulla is the sailing fleets of dandelion clocks. Fulla is lion-pelt, cats' teeth. I do not think I have got lyricism quite right yet. The urge to commit it is overwhelming. The results not so. But it can all stay in, for the moment. We think in clichés because clichés are ideas which have so to speak proved their Darwinian fitness over time (I say nothing, here, of truthfulness). I could compare Fulla and Vera to tea and coffee, or Glasgow and Birmingham, but clichés are requisite here, like tap-roots into the common (in every sense) consciousness from which slightly adapted, new mutations are generated.
Como o livro não tem ainda tradução para o português, eu vou improvisar uma traduçãozinha aqui agora (desculpa qualquer coisa):
Fomos para a cama no escuro. Ela disse que não queria que eu visse o seu rosto todo inchado, daí resulta que ela não chegou a ver as mordidinhas de amor de Fulla. Senti com meus lábios e as pontas dos dedos as lágrimas lentas que ainda se represavam entre suas pálpebras cerradas. Reparei e pensei que o cheiro de Vera, que na minha cabeça era prateado, combinava com o meu cheiro de uma forma bastante diferente de como era com o de Fulla, que era dourado na minha cabeça. Como foi que eu cheguei a essas metáforas sinestésicas? Vera (meu amor, meu xodó) é um peixe de prata em disparada, uma lua velejante num céu índigo, azougue a derreter-se em mil gotas, recombinando-se. Fulla é um cálice de ouro laboriosamente espraiado sobre a luz áurea do sol, Fulla é um pólen de ouro preso à penugem de uma abelha, Fulla são as frotas velejantes de relógios de dentes-de-leão. Fulla é couro de leão, dente de gato. Acho que ainda não consegui acertar direito isso do lirismo. A necessidade de cometê-lo é avassaladora. Os resultados, nem tanto. Mas vou deixar aqui, por ora. Nós pensamos em clichês, porque clichês são ideias que, por assim dizer, conseguiram comprovar sua capacidade de adaptação darwiniana ao longo do tempo (não digo nada aqui a respeito de sua veracidade). Poderia comparar Fulla e Vera com chá e café, ou Glasgow e Birmingham, mas clichês são um requisito aqui, como raízes que se prendem à consciência comum (em todos os sentidos) das quais dá-se a geração de novas mutações, levemente adaptadas.
Reiterando: eu mesmo acho esse parágrafo especialmente bem escrito, mas não pelos motivos mais óbvios. O que chama a atenção a princípio são as imagens, claro. Vera é, como disse, uma técnica em enfermagem que trabalha num hospital e é uma figura mais lunar, noturna, sombria. Fulla, cujo trabalho a aproxima da natureza e da terra, é visivelmente solar, em contraste - e Phineas se diverte traçando esses paralelos. Mas não é isso. Não é porque as imagens aqui são boas que eu digo que esse parágrafo é bem escrito... até porque elas não são. E é de propósito.
Nessa cena, Phineas está transando com Vera após ter transado com Fulla recentemente, por isso o comentário sobre as mordidas5. Vera está com o rosto inchado e lágrimas nas pálpebras, porque estava chorando, depois de ter tido uma interação no hospital com um paciente com câncer, o que a deixa desestabilizada. Em contraste, a cena de sexo com Fulla foi uma coisa que começou com os dois observando besouros no mato. E a graça é justamente que as imagens que Phineas encontra são banais e canhestras. Ele não resiste ao impulso de engavetar as duas mulheres segundo categorias arquetípicas, com as quais ele associa uma série de imagens… e o melhor é que ele está ciente de que sente esse impulso e de que não consegue resisti-lo (“A necessidade de cometê-lo [i.e. cometer o lirismo] é avassaladora”), assim como está ciente de que não tem jeito para escrever lirismo.
Isso é interessante de acordo com o que nos revela a respeito do personagem: algum crítico (infelizmente não lembro qual agora) comentou que The Biographer's Tale é uma história sobre como o nosso protagonista, em sua busca pela vida, pela realidade, acaba é, na verdade, se apaixonando pela linguagem. A cena em questão é um momento crucial no processo dele: suas experiências o levam a essa tentativa, ainda atrapalhada, de lirismo, talvez pela primeira vez na vida. E olha que legal - mesmo você que está lendo agora que nunca leu mais nem um parágrafo do livro consegue ter uma ideia de como é o personagem a partir dessa caracterização: inseguro, hesitante, meio neurótico e excessivamente autoconsciente. Ele não consegue simplesmente jogar um jorro de lirismo na página. Ele precisa voltar e pensar no que escreveu, oferecer uma autocrítica e nos permitir, assim, acompanhar os seus processos mentais. Mais tarde também, ele questiona esse impulso de caracterizar as duas mulheres: algo se perde quando ele acaba botando Fulla e Vera nas suas caixinhas solar e lunar, respectivamente, e ele percebe isso. Na busca de imagens e símbolos, é muito fácil perder a pessoa de vista, o que é uma questão bastante relevante quando estamos falando de... biógrafos.
E é verossímil, porque é assim mesmo: o impulso ao lirismo na vida amorosa é relativamente natural, não é? Assim como é o impulso que nos leva às categorias fechadas. Muita poesia ruim já foi escrita assim - ruim porque esse tipo de coisa é uma habilidade como qualquer outra, não é todo mundo que tem e os nossos primeiros esforços nessa direção costumam ser… dolorosos. Mas não é todo mundo que tem autoconsciência de estar fazendo um lirismo podre, de estar escrevendo clichês. Aí entra a conclusão de Phineas: “clichês são ideias que, por assim dizer, conseguiram comprovar sua capacidade de adaptação darwiniana ao longo do tempo”.
Quando a gente se depara com uma frase dessas num romance, não é para querer botar numa camiseta ou um quadro para pendurar na parede. É irrelevante se essa frase é verdadeira ou não. O importante é como ela se conecta com a narrativa, e Phineas a essa altura já está tão imerso nesse mundo do que chamavam de “história natural” dos séculos XVIII e XIX, entre os biografados de SDS, Lineu e Galton (com Darwin por consequência), que a metáfora evolutiva lhe vem com facilidade, em termos de adaptabilidade e mutações.
E o que é mais legal: o parágrafo todo encena esse movimento rumo à linguagem. Começamos com algo que é bastante concreto, i. e. o rala e rola que está de fato acontecendo. A partir daí chegam as imagens comparativas, o que é um primeiro grau de abstração. Depois, percebe-se que essas imagens são clichês (um segundo grau de abstração) ao que sobrevém a conclusão darwinista (um terceiro grau?). Ao término do parágrafo já estamos plenamente no terreno da metalinguagem. Mas qual foi o motivo de Phineas ter mudado o tema de sua pesquisa? O excesso de abstração do pós-estruturalismo, a obsessão com linguagem, o perder-se no ar em vez de procurar o que é palpável. Tendo isso em mente, as decisões que Phineas toma ao término do livro (que eu não vou comentar aqui) passam a fazer todo o sentido, tematicamente.
Em resumo, com esse exemplo eu quis demonstrar como, na minha humilde opinião, a boa prosa romanesca não é necessariamente aquela que apresenta um maior grau de complexidade ali no momento-a-momento. Existem grandes figuras que escrevem prosa assim, claro, mas o mais importante é que haja essa conexão com quem o personagem é e quem ele está em vias de se tornar, com os temas que permeiam a obra, com o que está sendo discutido por meio daquela narrativa. Qualquer idiota pode abrir o Chat Chupetex e pedir para o robô escrever um parágrafo avulso sobre qualquer coisa que soe relativamente bem. Daí para fazer uma coisa coesa, a história é outra.
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Este post do facebook, que às vezes viraliza, representa pra mim o que é mais detestável nessa visão. Claro que o post pode ser lido como uma piada às custas de certos escritores, mas tem gente que se identifica a sério e acha mesmo que escrever bem é ficar enfeitando a cena sem que nada efetivamente seja dito.
Foi, aliás, numa aula do prof. Caetano Galindo sobre Joyce que eu entendi que escrever bem, no caso do romance, também pode incluir escrever mal. O exemplo em questão é o episódio Eumeu de Ulysses, escrito ironicamente num registro bocó de século XIX, em que as pessoas não apenas dizem coisas, mas estão o tempo inteiro ejaculando (uma palavra que tem uma acepção antiga de “exclamar” em inglês, mas que é claro que Joyce achava graça de usá-la assim).
Sim, eu armei uma armadilha para vocês. Este texto é sobre uma das minhas obsessões literárias pessoais.
Só para deixar claro, tanto Scholes Destry-Scholes quanto Sir Elmer Bole são invenções ficcionais de Byatt. Isso é importante nessas obras muito meta, porque é fácil se perder no labirinto do que é ou não ficção.
Infelizmente eu lembrei agora daquela tirinha do Latuff. Aquela.
pqp
Seus textos são verdadeiras aulas!! Bravo!!