M. D. #12 – O Guia Pervertido ao Antigo Testamento
Ou: cadê o pessoal da pornochanchada para dirigir filmes bíblicos?
Estavam com saudades? Pois é, mais de um mês sem texto novo aqui, que vergonha. Mas, calma, que eu não desisti da newsletter! É só a vida de tradutor mesmo.
Na edição de hoje eu gostaria de compartilhar um fato talvez inusitado sobre a minha pessoa: eu tenho aqui algumas obsessões pessoais, como todo mundo – o que hoje a tendência é tomarem emprestado a terminologia médica e chamarem coloquialmente de hiperfoco, – e uma delas é o Antigo Testamento1. O Novo nem tanto (é chato), mas sigo achando o Antigo Testamento fenomenal, e uns anos atrás decidi não apenas fazer uma leitura desse material como também caçar tudo que eu podia achar a respeito de textos acadêmicos sobre o tema – tem muita coisa do Journal for the Study of Old Testament (JSOT), por exemplo, caído do caminhão da internet. Inclusive foi assim que eu conheci a Maíra, com uma thread sobre o assunto no falecido tuíter (aproveitando aqui também a deixa para mandar um beijo para ela, que semana passada foi dia dos namorados).
Vejam bem, eu tive uma criação meio pagã. Fui batizado, mas não fiz catequese, nem primeira comunhão, o que foi bom, pois me poupou de um trauma. Por isso, quando fui ter um contato mais profundo com esse material, depois de adulto e formado em Letras, foi pelo viés de alguém com interesse em Estudos Literários. E então a plena estranheza desse material me atingiu com tudo.
Uma das coisas que eu acho mais fascinantes do Antigo Testamento é que não é um livro, mas uma biblioteca (acho que é o Dr. Justin Sledge, do canal ESOTERICA, que fala isso, mas não tenho certeza agora). Quando esses textos, compostos em contextos diferentes ao longo do período de quase um milênio, são apresentados como uma obra coesa, acontece algo meio mágico e que me faz pensar em obras como o Jogo da Amarelinha do Cortázar. Vou explicar.
Antes de mais nada, deixo claro que estou usando a ordem e divisão judaica dos livros do A.T., que para mim é mais lógica do que a ordem cristão (sim, tem diferença2). A divisão judaica é tripartida: Torá, Profetas e Escritos. Ou seja, a gente começa com os cinco livros do Pentateuco ou Torá, de Gênesis a Números, o que cobre a narrativa da criação do mundo até a morte de Moisés, com toda a história no meio da revelação de Deus diante de Abraão, seus descendentes, como eles vão parar no Egito e como Moisés tira todo mundo de lá. Na sequência temos os Profetas, onde entram Josué, Juízes, Samuel e Reis, e depois os livros de oráculos (chamados de Últimos Profetas).
Josué e Juízes dão continuidade ao plot da conquista do Canaã, enquanto Samuel descreve o princípio da monarquia primeiro com Saul, depois David e Salomão, e Reis pega de Salomão em diante, até a queda dos reinos de Israel e Judá. Há uma narrativa contínua aí, portanto, que termina com a destruição de Jerusalém, motivo pelo qual esses livros são também chamados de Eneateuco (9 livros, em grego).
E é aí que a coisa fica divertida e a gente firma o paralelo com o Cortázar, porque o restante dos livros são, digamos, complementos para essa narrativa principal. Por exemplo, David é um dos personagens em Samuel. A ele também é atribuída a composição do livro dos Salmos, que é uma obra poética (embora seja bom frisar que nem todos os 150 salmos sejam assinados por ele). Lá pelas tantas, ele comete um grande ato de chinelagem quando manda um amigo para morrer no front da guerra só para comer Bate-Seba, a mulher dele. David acaba castigado, leva uma mijada de um profeta e tira um poema disso: o salmo 51.
Agora, é claro que a gente não tem a menor evidência material de ter existido um rei chamado David no antigo Israel, e mesmo que ele tenha existido o recurso da pseudepigrafia (atribuir um texto seu a um autor lendário mais antigo) é muito forte nesses textos. Ainda assim, dentro da narrativa, você ter lá essa relação de intertextualidade, de observar a história de David e depois ter os poemas dele, numa outra seção, que dialogam com esses acontecimentos, é genial. Outra figura com quem isso acontece é Salomão, que é um personagem relativamente pequeno em 1 Reis (ele ganha mais espaço mesmo é no folclore posterior), mas a poesia dos Provérbios e do Cântico dos Cânticos é atribuída a ele, além do Eclesiastes – o que serve para fornecer uma caracterização ausente nos trechos em prosa. É aí que a gente compreende a sabedoria de Salomão... e também o seu lado safado (Cântico dos Cânticos, apesar de ter uma leitura mística, é um poema erótico).
Uma outra narrativa fascinante é o livro de Rute, que é tipo um pequeno conto para nos mostrar as origens de David, já que ele aparece meio que do nada em 1 Samuel. Também é um texto de natureza polêmica, porque mostra que David descende de moabitas e sua composição seria numa época em que estavam instaurando uma política fortemente etnocêntrica em Israel (sem comentários), bastante hostil aos seus vizinhos. Em termos de composição, entende-se que há uma influência da literatura persa, que também é observada em outros dois livros em estilo conto, como Jonas e Ester.
E por aí vai. Temos os livros proféticos (Isaías, Jeremias, Ezequiel) que incluem narrativas e oráculos3 que se encaixam no meio desse enredo mais amplo, o livro de Lamentações que chora a destruição de Jerusalém (e é atribuído a Jeremias), o material apocalíptico de Daniel, e a poesia absolutamente sublime do livro de Jó – sim, Jó é também um livro poético. A introdução, com o prólogo no céu (que depois vai inspirar uma cena parecida no Fausto de Goethe) e o final são em prosa, mas todo o miolo é poesia. E é uma poesia que trata de Grandes Questões Humanas, como o problema do sofrimento e a aparente indiferença de Deus, contrariando a teologia retributiva mais simples que aparece em outros momentos, como em Samuel. Todo mundo que tem interesse em poesia tinha que ler o livro de Jó pelo menos uma vez na vida.
E, óbvio, tem também a baixaria.
Bom, eu fiz uma introdução mais cabeçuda (risos) para esse texto que é para disfarçar um pouco. A maioria das pessoas já desistiu de me ler a essa altura, então podemos ser francos: é claro que um grande apelo disso tudo para mim é a baixaria. Está no título da edição.
Se você frequenta a internet, provavelmente já esbarrou na citação de Ezequiel: “E enamorou-se dos seus amantes, cuja carne é como a de jumentos, e cujo fluxo é como o de cavalos. Assim trouxeste à memória a perversidade da tua mocidade, quando os do Egito apalpavam os teus seios, por causa dos peitos da tua mocidade” (. Sim, a carne e o fluxo aqui são eufemismos para pênis e ejaculação. Olha, tem contexto para isso, mas mesmo assim é meio… puxado: a relação entre Deus e Israel é apresentada frequentemente como uma relação erótica, em que Deus é o marido e Israel a esposa (isso depois vai aparecer no conceito cabalístico da Shekinah). Por essa lógica, quando Israel comete idolatria e vai atrás de outros deuses (uma das grandes preocupações do texto bíblico pós-retorno do Exílio, quando é firmado o monoteísmo estrito), esse ato pode ser visto como um adultério. Em Oseias, outro profeta e um dos livros mais antigos do Antigo Testamento, essa metáfora do adultério e prostituição aparece de novo, mas é ainda mais pungente: Deus faz Oseias se casar com uma prostituta, com quem ele tem uma filha, Lo-Ruhamah (sem piedade), e um filho, Lo-Ammi (não é meu povo). Ezequiel tem isso da prostituição também, mas ainda inclui outras coisas estranhas, tipo a cena em que o profeta come pão assado com bosta (4:12).
Mas vamos voltar mais e começar pelo Gênesis. Todo mundo lembra da cena em que Noé toma um porre e tira a roupa (ouvi já muitas histórias de alcoolismo nesse sentido). Seu filho Ham o vê pelado e Noé o amaldiçoa por isso. Só que essa é uma reação meio exagerada, e aí fica a questão: o que foi que Ham fez de fato com Noé? Tem mas discussões exegéticas sobre isso, mas um sábio diz que Ham castrou o pai, e outro que ele o enrabou. E, caso alguém ache que eu estou inventando, eu tenho provas disso, bibliograficamente, OK? Só clicar aqui.
Ainda no Gênesis, claro, como esquecer de Sodoma e Gomorra? Por mais que a palavra esteja na raiz do termo “sodomia”, em outros momentos (Amós e Ezequiel), explica-se que o crime de Sodoma não tinha nada a ver com homossexualidade e sim com a decadência causada pela riqueza. O povo lá encheu muito os bolsos, desprezava os pobres e acabou ocioso e perverso no caminho (meio que nem os aristocratas de Jogos Vorazes ou o Jeffrey Epstein e seus amigos). E aí querem estuprar os anjos que acompanham Abraão quando ele vai lá buscar Ló, mas acabam castigados, pois os anjos os cegam.
Na sequência, a gente tem outra cena que muita gente lembra com uma sensação de “que porra é essa?” quando as filhas de Ló embebedam o pai para transarem com ele e engravidarem. Parece que até que foi o George R. R. Martin que escreveu, mas eu juro que tem uma explicação. O Gênesis opera numa lógica de explicar as origens de vários povos, geralmente atribuindo-os a um único indivíduo. Israel, por exemplo, tem sua origem em Jacó, que muda de nome para Israel, irmão de Esaú, que é o pai da nação de Edom. Os filhos incestuosos de Ló com suas filhas são batizados de Moab e Ben-Ammi, “o pai dos amoneus”. Os moabitas e amoneus eram vizinhos do antigo Israel (vide o mapa). É mais ou menos como se a gente estivesse escrevendo uma história sobre as origens da América do Sul, quisesse zoar os hermanos e botasse dois personagens literalmente filhos da puta que se chamassem Argentos e Paragua. Pois.
No mais, a história de Onã também está no Gênesis, o que é uma das maiores injustiças textuais cometidas contra um personagem. O irmão de Onã tinha uma esposa e, quando ele morre, ela passa a ser a esposa dele. Ele fica encarregado de botar um filho nela, mas se recusa e pratica coito interrompido. Por sua recusa a cumprir o que Deus queria, o Deus do Antigo Testamento, que era famosamente bastante razoável, o mata. Porém, de algum modo as pessoas entenderam que essa era uma narrativa antimasturbação e cunharam o termo "onanismo" em homenagem ao coitado. Interpretação de texto nunca foi o forte das pessoas.
Mas acho que, dos livros com historinha, talvez o meu favorito seja Juízes. É muita baixaria. É um livro que eu li um pouco mais a fundo para escrever a introdução da minha tradução do Sansão Agonista, do Milton, por isso muita coisa aí ficou bem gravada na minha cabeça. Juízes segue uma estrutura cíclica em que os israelitas são oprimidos pelos seus vizinhos, os filisteus, aí Deus manda um herói (chamado de shofat, juiz) que enfrenta os opressores e liberta todo mundo, mas depois eles caem em idolatria e Deus permite que eles sejam oprimidos de novo. E assim por diante.
O negócio aqui é que um dos comentadores aponta como TODOS os juízes têm em comum o fato de serem figuras improváveis. Um juiz é canhoto, outro é covarde, outro é uma mulher (por favor, lembrem que estamos falando da perspectiva de uma civilização antiga). E, pior, o canhoto, Ehud, é da tribo de Benjamin – Ben Yamin em hebraico, “Filho da Mão Direita”. E o texto tem um monte de jogo de palavras com o termo para “mão”. É foda quando até o narrador zoa o personagem, mas melhora: por ele ser canhoto, ele esconde a espada na coxa direita, onde ninguém esperava que ele fizesse isso, e assim consegue matar o rei Eglon cravando a espada na sua barriga enquanto ele está cagando. Não sei por quê, na minha cabeça, Ehud é interpretado pelo Bruce Willis.
O único juiz que não é uma figura improvável, que na verdade foi criado a vida inteira para cumprir esse cargo, inclusive tendo sido anunciado por um anjo e criado como um tipo de super-herói eclesiástico, é o famoso Sansão. Eu poderia falar longamente de Sansão, mas aqui, no contexto, acho que vale apontar para o fato de que ele não tinha a menor intenção em enfrentar os filisteus. O que ele queria mesmo era beber vinho e molhar o biscoito, e todas as histórias dos capítulos em que ele é o protagonista podem ser lidas por esse viés meio cômico e burlesco. Inclusive o corte de seus cabelos pode ser lido como uma castração simbólica (Milton o leu assim, aliás, e põe na boca de Sansão uma fala em que ele se compara a um carneiro castrado).
Tudo isso para mim se combina para formar uma obra que é absolutamente fascinante enquanto literatura e que nunca foi explorada do jeito que devia pelo audiovisual, porque (imagino) é difícil de acertar o tom e existe esse ideia de que esse material é domínio exclusivo do religioso e aí tudo que ser que nem novela da Record. O filme Noé do Aronofsky tem o mérito de ter destoado disso, mas é um filme do Aronofsky, né, e aí isso vem com toda uma leva de problemas próprios.
Para quem tem interesse em explorar os textos bíblicos por um viés literário, eu deixei alguns textos no escamandro, de uns anos atrás, sobre O Cântico de Débora em Juízes 5 (o poema mais antigo da Bíblia), o Eclesiastes, o Cântico dos Cânticos e comparando a cena de necromancia no livro de Samuel com a que temos na Odisseia. E aproveitando o embalo, tem também o poema ugarítico em que Deus-mas-ainda-não-bem-Deus dá um churrasco, toma um porre e dá vexame. Acho que isso há de servir para a gente ver o quanto a gente está perdendo quando deixa esse material como exclusividade de neopentec.
Assinar a Mercurius Delirans literalmente não custa nada e eu não tenho planos de monetizar a newsletter tão cedo. Se eu te ajudei a se distrair um pouco das dores da existência neste plano físico e você quiser dar uma força, sempre pode comprar meus livros.
O título da edição é inspirado nas coisas que o Zizek faz com a estrutura “A Pervert’s Guide to _____”. Eu prefiro traduzir como “O Guia do Tarado a ____”, mas pessoal traduziu de outro jeito e aí eu queria manter o paralelismo.
A divisão cristã começa com o Pentateuco também, mas faz uma bagunça no meio e bota os profetas no final com o propósito de emendar o Novo Testamento nessa vibe profética. Acho menos interessante, justamente porque quebra essa estrutura de uma narrativa coesa com plot nos primeiros 9 livros e os outros livros como narrativas e poemas complementares.
A grande vantagem do profetismo de quem prevê desgraça, sem prestar muita atenção para prazos mais exatos, é que geralmente a desgraça uma hora chega.
O Novo Testamento é aquele filme continuação de algo que foi um sucesso só que como ele tá sendo lançado muitos anos depois e não segue o mesmo tom do material original, sai direto pra DVD (ou hoje streaming)
meu sonho é um filme do paul verhoeven sobre gideão e toda a parada deles arregaçarem os midianitas com 300 homens, vasos com piche, tochas, e cornetas. Ia ter sangue pra caramba.