M. D. #19 – Um prenúncio de uma história cultural do prepúcio
Ou: trívias divertidas para contar no bar
Depois de umas discussões literárias seríssimas, o começo da campanha da divulgação do meu novo livro, Minguante (igualmente seríssimo), e uma leva de novos inscritos, eu preciso que as pessoas lembrem com quem é que elas estão lidando.
E aí eu reclamo que eu não tenho público, né?
Mas, antes que me acusem de falocentrismo com esta edição da newsletter, friso que a culpa não é minha. Os antigos que se preocupavam demais com a pelinha na ponta do pinto, a ponto de acumularem séculos de elucubrações a respeito desse tema. Eu sou só um colecionador desses fatos, porque acho engraçado – um colecionador, assim como Deus é um Colecionador de Prepúcios, na fala de Buck Mulligan no primeiro episódio de Ulysses de Joyce.
Vocês não acharam que eu fosse fazer essa ponte, né?

Prepúcios são um tema muito importante na literatura judaica, naturalmente. Afinal, o ritual da circuncisão (brit milah) feito por Abraão é o que firma a aliança entre o patriarca e o deus Yahweh no livro do Gênesis, cap. 17 – aliás, em certo sentido, esta edição da Mercurius Delirans pode ser lida como uma expansão da edição #12 – O Guia Pervertido ao Antigo Testamento.
No entanto, é claro que a tendência a retirar essa pelinha – chamada de ’orlah1 em hebraico, da raiz ayin-resh-lamed, com o sentido de “encoberto” – não começou com o patriarca bíblico, mas já era praticada na região. Acho que não convém aqui entrar nos detalhes do hábito de grupos humanos de praticar marcações do corpo, que Nietzsche aponta na sua Genealogia da Moral e que Deleuze e Guattari vão associar a uma certa etapa do desenvolvimento da sociedade em seu Anti-Édipo, a tal “máquina social primitiva”2. Quem quiser pode ir atrás dessas referências, mas, por ora, vou só apontar para um artigo de Jack Sasson, intitulado “Circumcision in the Ancient Near East”. Segundo Sasson, a circuncisão já era um hábito conhecido do povo do norte da Síria desde o terceiro milênio a.C., conforme atestado tanto por evidências de estatuetas da região que exibiam membros circuncidados quanto por artes egípcias em que os sírios apareciam como inimigos e eram desenhados sem prepúcio. Posteriormente os egípcios também viriam a adotar o hábito de circuncisão.
Devo deixar claro que esse artigo é um tanto velho e data da década de 1950, por isso é bem capaz de estar desatualizado. Mas não consegui encontrar algo melhor e acho que eu já passo muito tempo escrevendo aqui, aí fazer pesquisa a sério para uma edição de uma newsletter é um pouco demais.
Há quem diga que a motivação principal por trás da circuncisão é como um tipo de ritual de fertilidade… o que é o clichê dos clichês, né. Quando o estudioso não sabe dizer ao certo o que uma antiga prática fazia, ele bota no balaio de “rituais de fertilidade”. Mas nesse caso, se pá, faz sentido. No contexto do Gênesis, Abraão (ainda chamado Abrão, com um prepúcio a mais e uma letra a menos) não tinha filhos, mas concebe seu primogênito Isaac após firmar sua aliança com Yahweh (Ismael, seu filho com a criada, não conta). No contexto do palimpsesto religioso que são os textos do Antigo Testamento, faria todo o sentido essa conversão de uma antiga prática para uma reinterpretação sob uma perspectiva desse culto então emergente, assim como a comemoração do Êxodo sobrescreve antigos ritos primaveris cananeus.
Mas estamos ficando demasiadamente cabeçudos aqui. Inferno, este texto é para compartilhar absurdos, não praticar antropologia amadora. Então vamos lá.
Em contraste, os gregos gostavam muito dessa pelinha, chamada akrobustíā em grego - de akro, em cima + uma segunda raiz que ninguém sabe bem de onde veio, nem o que significava, e há quem postule um possível empréstimo de línguas semitas. Enfim, mistérios do prepúcio. E os gregos gostavam dessa pelinha, porque ela cobre a chapeleta e eles não tinham maturidade para uma chapeleta descoberta. Falo sério aqui: mostrar o pinto tudo bem, mas expor a glande já era demais, um ato ao mesmo tempo indecente e usado de forma apotropaica, i.e. para espantar o mau olhado.
Inclusive, os atenienses praticavam um ato chamado cinodesma (“nó de cão”) que envolvia usar uma cordinha para amarrar o prepúcio, útil para quem se apresentava nu ao público, como atletas e atores. O artigo em português da Wikipédia é meio pobrinho. Em inglês é melhor, mas deixo aqui o aviso de que os wikipedianos anglófonos se empolgam demais em seus esforços para divulgar conhecimento e aí, por isso, tem fotos lá de uma piroca amarrada como se fosse a embalagem de um ovo de Páscoa, cortesia do usuário Popinozzi (as cores da imagem foram zelosamente corrigidas por outro usuário depois).
Aí você pode imaginar o choque cultural entre os dois povos quando veio o período helenístico e todo o Oriente Próximo foi conquistado, inclusive culturalmente. Para os gregos, expor a glande era indecente, e a circuncisão, uma mutilação. Aí, para os israelitas helenizados, embora praticassem a circuncisão tradicionalmente, havia uma certa vergonha inculcada por essas influências, e assim ficava um climão nos banhos e ginásios. Então o que eles faziam? Claro, pegavam o sobrava da pele e ESTICAVAM.
Pior, na verdade, havia um procedimento cirúrgico chamado epispasmo que às vezes é chamado pelo nome pitoresco de circuncisão ao contrário. Vou só largar um link aqui sobre o assunto e deixar por isso mesmo, porque não quero ter que pensar demais nisso.
A questão é que a presença ou não do prepúcio não era apenas uma marca de diferença cultural ou de hábitos higiênicos, como a famosa marca de vacina brasileira no braço, mas algo espiritual. Os israelitas não viam a circuncisão como uma mutilação, mas sim como uma restauração do corpo ao seu estado original. De novo, eu não estou inventando nada, tudo isso é bem documentado na literatura judaica e inclusive essa visão persiste ao longo do desenvolvimento do judaísmo rabínico (fonte).
E eis que, segundo uma certa leitura, Adão não tinha prepúcio. Quando Deus te desenhou criou o ser humano, nada cobria sua gloriosa glande. Seu prepúcio, no entanto, cresceu após a expulsão do Éden.
Vocês conseguem imaginar a cena? O querubim com a espada de fogo nos portões do Paraíso, Adão e Eva envergonhados, e o prepúcio de Adão fazendo FIUUUUUUUU, talvez com o efeito sonoro de uma flauta-doce? Grandes cenas do cinema que infelizmente jamais foram filmadas.
Mais uma vez, sei que parece que eu estou inventando coisa, mas vocês podem conferir num livro sério como a Encyclopedia of Jewish Myth, Magic and Mysticism do Rabbi Geoffrey Dennis e está tudo lá, no verbete “circumcision”. E calma que piora.
Tem um episódio completamente absurdo do livro do Êxodo. Moisés está viajando com sua esposa Zípora e seu filho Gérson que ainda não havia sido circuncidado (que feio, Moisés). E acontece no caminho o seguinte:
E aconteceu no caminho, numa estalagem, que o Senhor o encontrou, e o quis matar. Então Zípora tomou uma pedra aguda, e circuncidou o prepúcio de seu filho, e lançou-o a seus pés, e disse: Certamente me és um esposo sanguinário. E desviou-se dele. Então ela disse: Esposo sanguinário, por causa da circuncisão. (Ex. 4:24-26)
Um minuto para apreciarmos a cena em que Zípora simplesmente arremessa um prepúcio aos pés de Deus. Tipo, “toma essa merda”.
Em resumo, ninguém entende esse trecho muito bem (quem disser que entende está mentindo), não se sabe direito de onde vem (parece ter sido interpolado, porque não tem nada a ver com o que vem antes, nem depois) e nem o que os autores queriam dizer com isso. E aí, claro, esse tipo de situação é convidativo a leituras, digamos, peculiares. Consta no Talmude (e podem ir lá conferir no livro do Rabbi Dennis) que, como castigo por não ter feito a circuncisão do filho, Deus envia um anjo destruidor na forma de uma serpente que engole Moisés. No entanto, embora Moisés tenha sido engolido por essa anaconda celestial, ela não consegue ir “além do sinal da aliança”, i. e. o membro circuncidado de Moisés.
Vou dar mais um meio minuto aqui para vocês visualizarem a cena. Conseguiram imaginar? A piroca ali pendurada na boca da cobra feito um fio de macarrão? Ótimo.
Aí Zípora viu a cena e entendeu o recado, por isso foi lá, fez a circuncisão do Gérson, e tudo se resolveu.
E pensar que as pessoas acham estudos bíblicos uma coisa sem graça.
Enfim, naturalmente, o prepúcio tende a ganhar um certo peso simbólico nos escritos judaicos, aparecendo em expressões na Bíblia como circuncisão dos lábios, circuncisão do coração e coisas assim. Essas tendências discursivas foram continuadas depois por alguns cristãos, como Santo Agostinho (fonte), embora as comunidades cristãs não praticassem mais a circuncisão.
Vale lembrar, né, que o cristianismo não começa como uma religião separada logo de cara, mas como um secto minoritário entre os judeus do século I, e a mensagem aos poucos vai chegando nos gentios também. O próprio Jejê era judeu, e por isso foi circuncidado, e seu prepúcio foi tido como uma relíquia durante a Idade Média. Tem um resumo na Wikipédia, o prepúcio passa de mão e mão, é roubado e a coisa toda me lembra até as desventuras do Um Anel de Tolkien. Parece que lá pelas tantas a Santa Catarina de Siena chega, inclusive, a comparar o santo prepúcio com um aliança de noivado, o que me faz pensar que em algum momento alguém vai atirar um prepúcio no Vesúvio e assim desencadear a destruição do Vaticano.
Havia muita discussão no cristianismo primitivo do quanto se devia seguir dos costumes judaicos em termos de calendário, preces, regras alimentares e, claro, circuncisão. Paulo, porém, que era judeu (e o primeiro self-hating Jew, segundo alguns) é categórico, em uma das epístolas: “Eu, Paulo, vos afirmo que Cristo de nada vos servirá, se vos deixardes circuncidar” (Gálatas 5:2). Ele chega até a fazer uma gracinha de mau gosto e diz que, já que esse pessoal gosta tanto disso, que cortem logo tudo de uma vez (“Quem me dera se castrassem àqueles que vos estão confundindo!”, versículo 12).
Achei rude.
E aí, dentre as religiões abraâmicas, em oposição aos cristãos, a circuncisão, chamada khitan, é uma prática também comum do islã. Infelizmente eu não entendo o bastante da religião para falar algo com propriedade e só posso consultar enciclopédias. Mas é um daqueles casos curiosos de proximidade com o judaísmo, já que as duas religiões também partilham de um código alimentar parecido - embora em ambos os casos haja uma relação de semelhança, semelhança não é exatidão. Enfim.
Corta (hehe) agora para séculos depois. Uma coisa muito curiosa quando a gente consome mídia norte-americana é que lá é aparentemente comum os homens serem circuncidados, embora a população de judeus e muçulmanos seja apenas de 2,5% e 1% do total do país, respectivamente. E não é possível que a incidência de fimose lá seja tão elevada assim. O que aconteceu aí?
Bem, ao que tudo indica a culpa é dos vitorianos. Conforme a tônica do discurso moral dos caras foi sendo transferida do âmbito religioso para o médico, o discurso antimasturbação deixou de enfatizar a ideia de que “é pecado” para ressaltar os supostos efeitos deletérios do derramamento de esperma, com a ideia de que isso exaure os nervos. O livro cuja capa eu coloquei acima como ilustração tem esses desenhos hilários mostrando o que acontece com o jovem punheteiro: primeiro ele é todo bonitinho de bochecha rosada, como aparece no canto superior esquerdo, mas de tanto bater punheta ele vai definhando. Sim, com certeza era a punheta que fazia mal, não a fumaça de carvão no ar das cidades, o cólera na água, o arsênico nos papéis de parede ou a heroína nos xaropes para tosse.
Uma solução encontrada pelos médicos vitorianos para isso foi cortar o mal pela raiz e já decepar a gola rolê, a fim de diminuir a tentação da masturbação. Se funciona, eu não sei. A julgar pelo humor judaico contemporâneo, eu diria que não, do contrário não teríamos um vasto corpus que vai da literatura de Philip Roth até os filmes do (falando baixo) Woody Allen e o desenho Big Mouth3. Mas, em todo caso, a coisa ficou. E reitero: em meu compromisso com a verdade, eu não estou tirando nada do meu cu aqui e tenho fontes para essas afirmações4.
Bizarramente, mais uma vez uma característica marcante dos EUA tem a ver com medo de punheta. O hábito deles de comer sucrilhos no café da manhã, bom frisar, também vem da neurose do Dr. Kellog de querer que as pessoas não se masturbassem. E pensar que isso perdura até hoje com os grupos de nofap no reddit e afins. Ô povo ruim da cabeça.
E assim chegamos ao fim desta edição da Mercurius Delirans, com a sensação de que, embora este seja um assunto pequeno, estamos explorando apenas a pontinha. Fica aí o lembrete de que agora é o finzinho de novembro, um mês que é azul por causa da saúde masculina, mas é meio contraproducente porque nele a gente não pode se barbear, não pode se masturbar e ainda tem que escrever um romance. Enfim, neste novembro azul vale lembrar que uma quantidade absurda de homens têm o pinto amputado todos os anos no Brasil por falta de higiene, por isso fica aí o apelo de que, por favor, escutem o Mario ali e não esqueçam de lavar o prepúcio.
Depois dessa edição, é meio difícil de aproveitar o embalo agora para tentar vender meu livro (o Momo Rei parece mais adequado no contexto), mas aqui estou lembrando vocês de novo que o meu próximo livro de poemas, Minguante, está em campanha de pré-venda e semana que vem é meu aniversário: https://benfeitoria.com/projeto/minguante.
Assinar a Mercurius Delirans literalmente não custa nada e eu não tenho planos de monetizar a newsletter tão cedo. Se eu te ajudei a se distrair um pouco das dores da existência neste plano físico e você quiser dar uma força, sempre pode comprar meus livros… incluindo o Minguante.
Sobre o trocadilho que eu falei na legenda da foto. ‘Or em hebraico é luz e aí o trocadilho com ’orlah se insinua a princípio, mas tem uma pegadinha. O ‘or de luz se grafa álef-vav-resh, enquanto prepúcio começa com ayin, é outro som totalmente (o último som antes de se vomitar), mas é meio difícil de distinguir para quem não é falante nativo.
Bom apontar que D&G não atribuem uma conotação negativa ao “primitivo” aqui, é só como eles chamam a coisa mesmo.
O pipeline de humor obsceno judaico que vai de Roth até Big Mouth é um assunto que eu gostaria de explorar em algum texto, mas infelizmente acho que não tenho o arcabouço teórico necessário para isso.
Então vamos lá às fontes: tem um livro intitulado A Surgical Temptation: The Demonisation of the Foreskin and the Rise of Circumcision in Britain, de Robert Darby, só sobre isso, que é resenhado neste artigo aqui. Tem um texto também no New York Times, mais antigo, de 2009, The Latest Fight Over the Foreskin. E um artigo de Eleanor Self discute a ascensão da circuncisão nos EUA durante o período vitoriano.
Gosto de ser assinante do MD porque a gente nunca sabe se vem um texto sobre poesia babilônica, noção de autoria, Xuxa ou prepúcio.
(Fiquei imaginando a tartaruga saindo do casco assim que Adão pisa pra fora do Éden e me diverti, obrigada por isso
FIUUU)
"Vou dar mais um meio minuto aqui para vocês visualizarem a cena. Conseguiram imaginar? A piroca ali pendurada na boca da cobra feito um fio de macarrão? Ótimo." HAHAHAHAH QUA'MORRI NESSA kkkk