M. D. #20 – Como ler um poema?
A resposta é que nem na piada dos porcos-espinhos cruzando: com muito cuidado
Oooh, estamos ousados hoje, né. Eu antecipo já duas críticas possíveis a este texto: 1) a de que ele é óbvio e 2) a de que é muita cagação de regra. Para quem achar óbvio, bem, vivemos numa época em que às vezes o óbvio precisa ser dito, então paciência. Para a crítica #2, deixo o aviso de que eu não estou obrigando ninguém a fazer nada, ninguém aqui é meu aluno de literatura e vai precisar fazer as coisas como eu mando se quiser passar. Cada um lê do jeito que achar melhor, e eu só estou compartilhando uma abordagem possível, que eu acho a mais interessante no contexto contemporâneo, dentro da minha experiência como alguém que teve um contato bastante intenso com esse mundo. É engraçado que eu nunca tive nenhuma experiência de hostilidade por aqui no Substack, mas ainda assim creio que seja da natureza da internet a gente ficar um pouco defensivo.
Importante deixar claro também que este é um texto especialmente para leigos, que não vai entrar no jargão técnico da teoria literária e não tem a menor pretensão de tentar exaurir o assunto. Não dá para fazer isso em um único livro, que dirá uma edição de newsletter. Mas… de novo, internet, né, as pessoas têm umas expectativas meio impossíveis às vezes.
Na edição #18 eu falei algumas coisas sobre o processo de leitura poética. Retomando e resumindo o que eu disse, o poético seria uma forma de se engajar com as coisas, e uma forma na qual a gente enxerga uma certa intencionalidade em tudo, a mão de uma consciência organizadora que não deixa nada para o acaso. Embora seja aplicável a absolutamente todas as coisas sob o sol, esse encaixe se dá mesmo justamente é com o poema, a obra literária que é feita para isso. Não por acaso, muitos poemas nasceram de uma aplicação do modo de leitura poético à realidade, que depois foi jogado de volta no formato de texto.
Aí, se um poema, por exemplo, menciona em algum momento a cor azul, a gente não pressupõe – feito o prototípico adolescente cínico da turma de português do Ensino Médio que não está envolvido na aula e responde o professor com deboche – que é só porque o poeta gosta da cor azul. Não, a gente faz um esforço mental para tentar entender como a menção à cor encaixa no contexto, o que tem a ver com os outros elementos geradores de significado no poema... e mesmo que, biograficamente, o poeta hipotético tivesse colocado essa menção lá só por gostar da cor azul, a gente releva esse fato biográfico e finge que não. E pau no cu dele, que a tese da morte do autor já vai fazer 60 anos.
Agora, eu não sei vocês, mas eu sou uma pessoa de exemplos… e, falando assim em termos abstratos, fica um pouco difícil entender, por isso vamos dar um exemplo concreto. Acho que um bom caso é o poema “The Sick Rose”, do Blake. Eu tenho um texto já sobre esse poema e algumas traduções dele no escamandro, então fica aí como leitura complementar para quem tiver interesse. Claro que a minha escolha foi pautada pelo fato de já ter esse material aí na mão, mas esse é um bom poema para isso, porque é 1) foda, 2) é curtinho (são só 8 versos) e 3) oferece uma boa abertura para a leitura, na medida em que não é autoexplicativo no uso de suas imagens1. Eu o considero um poema difícil, não por usar um vocabulário rebuscado, nem nada do tipo, mas porque é enigmático, exige um engajamento de quem lê para ligar o lé com o cré.
Um mínimo de contexto: William Blake foi um poeta, místico e pintor inglês nascido em 1757 e morto em 1827. Geralmente ele é colocado no balaio dos românticos da primeira geração, junto com Wordsworth e Coleridge, mas ele fazia meio que um rolê muito próprio e não tinha tanto contato, nem era conhecido nesses círculos. Seus poemas demoraram um bom tempo para serem lidos a sério, inclusive. “The Sick Rose” é um poema que consta no livro Canções de Inocência & Experiência, de 1794. Vários de seus poemas foram ilustrados pelo próprio autor, usando gravura em metal, e este é um deles, como podem ver abaixo:
Vamos começar, então.
Primeiro verso: O Rose thou art sick. Literalmente: Ó Rosa, estás doente.
Sempre achei esse um belo verso para se abrir um poema. Ele não perde tempo, é ágil e já apresenta a situação de uma vez. É um verso claro e insere o poema de cara na longa tradição poética de apóstrofes, i.e. versos que se dirigem a objetos e conceitos abstratos como se fossem pessoas. Essa constatação se dá na dimensão mais analítica do texto e nos permite entender o que ele está fazendo em termos de construção de uma estrutura verbal, mas tem um lado que é mais propriamente imaginativo, na medida em que, como leitores, somos convidados a pensar: quais são as associações que fazemos com a imagem da rosa?
Num primeiro momento, podemos pensar numa explosão de sentidos: a palavra "rosa" pode remeter à feminilidade (pode ser um nome bastante comum de mulher, inclusive), ao amor (mas que tipo de amor? o amor erótico? o amor inocente?), à cor vermelha, à dualidade da suavidade das pétalas coexistindo com esse lado mais agressivo dos espinhos, esse tipo de coisa.
Claro que nem todas as associações que a gente faz vão fazer sentido num nível mais mundano. Tem coisas que podem vir à mente num primeiro momento cuja relevância não resiste ao restante da leitura do poema, porque não encontra ressonância com os outros elementos que virão depois… mas isso é algo a ser resolvido conforme a leitura avança. E tem associações que a nossa mente traça e dizem respeito (e não tem como não) ao nosso contexto enquanto indivíduos inseridos no tempo, numa dada cultura e numa dada história de vida pessoal. Por exemplo, a menção a rosas me faz pensar em certos pontos de macumba de pombogira. Blake, enquanto um inglês nascido no século XVIII, não teria como saber o que é uma pombogira, obviamente. Mas aí que tá a graça do poema: a gente sabe que essa associação está só na nossa cabeça, não é uma associação “séria” no sentido de que seria aceita num texto de crítica literária ou numa prova do curso de Letras, mas o fato de que ela se insinua autoriza a possibilidade de brincarmos com isso, e essa possibilidade pode ser a semente para um experimento criativo, por exemplo, de misturar Blake com macumba2.
E ainda estamos no primeiro verso.
Então, beleza, esse verso faz isso. E aí temos duas possibilidades na sequência: ou o poema vai continuar essa descrição da rosa doente (como ela está doente? está desbotando? vomitando? com febre?) ou vai mudar o foco. E ele opta por mudar o foco:
Segundo verso, um novo personagem: The invisible worm. Literalmente: “O verme invisível”, apesar que “verme” pode não ser a tradução mais perfeita (o que não existe, né), porque muitas coisas que para os ingleses são worms não são necessariamente vermes para nós (vaga-lume, por exemplo, é chamado de glowworm). Mas calma.
Mudou o foco, então. A câmera, por assim dizer, passou para outra figura, cuja relação com a rosa e a sua doença ainda não é evidente, mas já pode ser intuída. Assim levantamos a hipótese da relação entre o verme e a doença da rosa, que pode ser ou não confirmada depois. Aí fica a questão: o que vem à mente quando falamos em verme? Eu pessoalmente fico com nojo, apesar que worm em inglês me soa mais suave. E o adjetivo “invisível”? De novo, explosões de possíveis associações.
Prosseguimos agora para os últimos dois versos da primeira estrofe:
That flies in the night In the howling storm:
(literalmente: “que voa na noite / na tempestade uivante”)
Certo. Do primeiro para o segundo verso, a relação não era de continuidade (o primeiro verso fala da rosa, o segundo do verme), mas agora o poema decidiu continuar descrevendo o verme. Isso por si só já é relevante. Se o 1º e o 2º verso falassem da rosa e o 3º e 4º falassem do verme, sendo que a estrofe é de quatro versos, haveria uma simetria. Mas, não, é uma relação de 1 para 3, o que dá um efeito de desequilíbrio. O que podemos tirar disso? Quais são as associações que a gente faz com ideias de simetria? E assimetria?
E, de novo, temos mais palavras-chave que despertam associações: “noite” e “tempestade”, que somamos às palavras “rosa” e “verme”. Aos poucos, assim, vai sendo constituída uma rede de significantes, todos os quais apontam, por sua vez, para toda uma riqueza de associações simbólicas. É uma constelação, poderíamos dizer (a-há).
Sobre as associações simbólicas desses versos, eu não preciso comentar, né. Ninguém aqui caiu do coqueiro, todo mundo entende que tem coisas que a gente associa com a noite e com a tempestade. A noite é o contrário do dia, o período de descanso, mas também de prazer e coisas ilícitas. E olha como os elementos vão se conectando e criando mais hipóteses que poderão ser ou não reforçadas ao fim do poema. E também dá para entendermos a questão da invisibilidade do verme: ele é furtivo e se esgueira pela noite. Mas por quê? Quais suas intenções nesse ato?
Por fim, vou apontar duas coisas aí nessa primeira estrofe (quantas palavras para apenas quatro versinhos). A primeira é que temos duas frases rolando. A primeira frase se dirige à rosa e ocupa o primeiro verso. A outra começa a descrever o verme, mas a estrofe termina antes do verbo: só vamos descobrir o que o verme fez de fato, sua ação, na estrofe seguinte. A segunda coisa é que o 4º verso apresenta uma rima: “tempestade” (storm) rima com “verme” (worm). A rima tipicamente liga, no plano do som, duas coisas que não necessariamente têm a ver em termos de sentido. Poeticamente, essa é uma forma de conectá-las para que sejam pensadas juntas. O que um verme tem a ver com uma tempestade?
Vamos agora para a segunda estrofe, que segue o mesmo padrão da primeira, em termos de tamanho e rima, mais quatro versos, rima nos versos pares, concluindo o poema. O que foi que o verme fez?
Has found out thy bed Of crimson joy.
(descobriu teu leito / de gozo carmim)
Uiuiui. Então é isso. Lembra quando jogamos acima as associações possíveis para “rosa” no começo do poema? Quem chutou “amor erótico” pode se sentir justificado, porque é o que aparece aqui. Temos a palavra “cama” ou “leito”. Assim como “noite”, “leito” pode remeter a descanso, mas não quando o verso seguinte fala em “crimson joy”. E atenção que o verme não apenas chega ao leito da rosa, mas ele o descobre. Se ele o descobre, é porque esse leito estava oculto. Há um óbvio erotismo aí. O vermelho carmim é, claro, a cor da rosa, mas o que é uma “crimson joy”? Como um substantivo abstrato como “joy” (gozo/júbilo) pode ter uma cor? E o que essa cor nos faz pensar? Em tesão? Em sangue? Mais elementos para nossa leitura.
E então encerramos com a reviravolta:
And his dark secret love Does thy life destroy.
(“E seu amor obscuro e secreto / Destrói a tua vida”)
Aqui é explicitada a ideia de um tipo de amor, que até o momento se via implícita, mas não é um amor fofo, bonitinho. Ele é obscuro, secreto e destrutivo, o que encontra ecos com as ideias de furtividade que vimos antes, com o poder destruidor da tempestade (quando a tempestade está uivando, você sabe que vai cair árvore) e a escuridão da noite.
E assim é resolvido o problema que o poema joga no começo: a rosa adoeceu, mas há uma mudança de foco logo depois do primeiro verso, e em vez de falar da doença da rosa, o poema passa a descrever o responsável por esse estado. A rosa está doente, porque está sendo destruída por esse verme e seu amor medonho. A rima aqui tem um papel importante também: a gente não costuma pensar em joy e destroy como coisas que participam do mesmo campo semântico, mas aqui elas estão unidas. É tudo muito bem amarradinho.

Esse modo de ler não é necessariamente difícil e eu nem acho que seja uma grande novidade explicitá-lo aqui (como dito, às vezes é preciso falar o óbvio). Mas não é como a gente está acostumado a ler, especialmente num mundo hiperacelerado que nem o de hoje, em que as pessoas respondem a tuítes SEM LER ANTES (280 caracteres, gente) e pedem para o ChatGPT resumir o conteúdo de um e-mail. Agora a gente volta lá na instapoetry que eu xinguei na edição #18 e tenta fazer esse mesmo processo com esses poeminhas. É uma aridez, não tem o que tirar deles, e não é por conta do tamanho, já que “The Sick Rose”, com apenas 34 palavras, é também um poema brevíssimo.
Vocês vão reparar ainda que, em nenhum momento, a gente fez uma análise profunda (do tipo que exige ferramentas desenvolvidas por alguma escola teórica) ou interpretação do poema propriamente. Isso vem depois. Por exemplo, o crítico S. Foster Damon tem uma opinião sobre os temas do poema (ele diz que é um lamento pelo modo como a sexualidade destrói a pureza do amor), Harold Bloom tem outra (para ele, o amor representado aqui é destrutivo por conta dos papéis de gênero), Camille Paglia mais uma (“A rosa está doente porque pensa que a comunhão do sexo drena e apaga sua identidade”), e assim por diante. O quanto essas leituras são válidas, por sua vez, aí isso é assunto para uma outra discussão.
Mas o que a crítica literária vai fazer é pegar esse processo, esse trajeto, e colocar em palavras de modo que seja transmissível aos leitores numa linguagem mais comunicativa. Você não precisa fazer isso ao ler um poema (você provavelmente não recebe para escrever críticas, afinal). Sem esse processo de leitura que eu vim descrevendo, um processo que é também criativo e exige a participação de quem está lendo, sua boa vontade de ir além dos significados literais, não tem como chegar a essa segunda etapa, que é interpretação ou crítica (e que dirá à terceira, de discutir as interpretações!). É tentar comer uma banana sem descascar antes.
(pausa para a inserção obrigatória de uma música do Coil aqui)
E, sim, vocês vão reparar que isso é cansativo, especialmente quando o poema dá pano pra manga, o que faz da leitura de livros de poesia um processo muito lento, até porque o efeito é cumulativo e o que a gente tira de cada poema vai dialogar com os outros poemas do livro. Por sorte, livros de poesia, em sua maioria são curtinhos. Mas é cansativo de um jeito bom. Eu sei que eu li um poema foda quando eu preciso parar, baixar o livro e ficar um pouco parado olhando para o teto depois de ler.
(foi bom pra você?)
Ler um poema não significa entendê-lo. Ao término do processo, você pode não ter ideia do que fazer com isso, e tudo bem, tem poemas que esperam esse resultado de fato. A questão é que existe uma ideia meio senso-comum de que, ao ler o poema, você possa no final responder à pergunta: Sobre o que é o poema? Do que o poema fala? O que ele expressa? E, a meu ver, essas são as perguntas erradas a se fazer (OK, senão “erradas”, são as menos importantes, no mínimo), porque pressupõem um engajamento ainda muito literal. Quando fazemos desse outro jeito, que eu vim descrevendo, mapeando as explosões de associações possíveis e observando os pontos de contato, os diálogos entre as associações que vão sendo feitos conforme o poema avança, aí a gente pode responder a uma pergunta muito mais interessante, que é: O que o poema faz?
Mais uma vez: meu quarto livro de poesia, Minguante, que vai sair pela Ofícios Terrestres em 2025, está em sua campanha de pré-venda/financiamento coletivo. Estamos quase batendo a primeira meta! Restam pouco menos de três semaninhas aí para apoiar! Link: https://benfeitoria.com/projeto/minguante.
E se você gosta de algo mais besta, que nem a edição #19 da newsletter, não esqueça de conferir o meu Momo Rei. É um ótimo presente de natal ou amigo secreto.
Assinar a Mercurius Delirans literalmente não custa nada e eu não tenho planos de monetizar a newsletter tão cedo. Se eu te ajudei a se distrair um pouco das dores da existência neste plano físico e você quiser dar uma força, sempre pode comprar meus livros… incluindo o Minguante.
De quebra, foi aniversário do Blake esses dias! Como homenagem, o pessoal do badpoetry.br mandou esta pérola.
A Rosa Arregaçada
Rosa, tá de cama.
O invisível bicho
Que de noite zanza
Em tormenta e lixo:
Achou teu cafofo
Rubro de prazer:
Seu negro amor oculto
Corrói o teu ser.
muito bom! (lendo as newsletters muito atrasada, porque o fim de 24 foi pesado)