M. D. #26 – O processo cultural de carreta-furacanização
Ou: do Falstaff de Shakespeare ao Bob Esponja em Magic: the Gathering
Tal qual o proverbial louco de palestra, começo com uma provocação: o trenzinho da alegria que a internet ama pelo seu absurdo festivo, em que o Máskara, o Mickey, o Popeye, o Capitão América e o Fofão saem por aí rebolando pelas ruas, não é uma aberração interiorana, ao contrário do que se possa pensar, mas o próprio horizonte da experiência estética sob o capitalismo contemporâneo. Daí que o processo de carreta-furacanização seja, senão inevitável, pelo menos algo que não deva surpreender a gente nas diversas frentes em que ele vai dar as caras nos próximos anos.
Explico. Vamos do começo.
A criação artística não é um processo eficiente, pensando ali num contexto industrial.
Cada arte, evidentemente, tem as suas peculiaridades, e aqui eu estou pensando mais nas artes narrativas. Desperdiça-se muito ao se criar um romance, por exemplo. Não é um desperdício material, mas de algo mais sutil, o que poderíamos chamar de energia criativa. Libidinal, se quisermos ser freudianos. Quando concebemos um personagem sob o modelo romanesco vigente (falei sobre isso na edição 25), é preciso pensar numa cacetada de coisas: seu nome, para começo de conversa, sua personalidade, sua aparência, seus gostos, suas origens, no modo como ele reage a cada situação e o porquê de suas reações, os mecanismos da sua mente, os eventos pelos quais ele vai passar e o que esses eventos vão fazer com ele. No romance, mais do que tudo, é preciso pensar na relação entre o personagem e a linguagem: como aquele personagem fala? Como o narrador se comporta quando cola nele? Se o romance que se está escrevendo tiver um único personagem, aí tudo bem, tranquilo, não é tanto trabalho assim, mas a maioria das narrativas vai ter outras pessoas com quem ele vai interagir, e para cada pessoa fictícia ali, idealmente, é preciso passar por esse processo todo de novo. E tudo isso exige um certo esforço.
Digo “idealmente”, porque é claro que dá para poupar trabalho aqui e ali. Um personagem que não tem grande importância e não aparece muito pode ter uma complexidade bem menor. Mas se todos os personagens principais forem estereotipados e privados de uma vida interior, se todos falarem e pensarem do exato mesmo jeito, simplesmente porque quem escreve não tem talento para variar o registro, aí a obra sofre demais1. A não ser que essa pessoa tenha poderes criativos limitadíssimos ou seja extremamente preguiçosa em aplicá-los, via de regra, cada história é todo um universo autocontido, que precisa ser criado do zero.
E, quando falamos de obras visuais ou audiovisuais, então, esse caráter dispendioso se torna ainda mais ressaltado, pois para cada personagem é preciso criar também o modo como ele se apresenta visualmente, o que chamam de character design e codifica uma quantidade absurda de significado. E é meio assombroso pensar nisso: que, ao término de um filme de uma hora e meia, uma peça de três horas, um romance de 100-700 páginas, aquilo tudo que foi criado vai cair de volta no vazio de onde veio. Nós vamos conviver com aqueles personagens durante um tempo, e então acabou. Daí que tantos leitores relatem um certo sentimento de vazio ao terminarem uma leitura, um tipo de luto. Não sei o quanto esse sentimento é “universal” e “atemporal” - hesito a chegar a esse tipo de conclusão, até porque a maioria das tendências artísticas que moldam o nosso gosto, nesse sentido, datam do século XIX, e mesmo o hábito da leitura silenciosa é muito recente - mas, num contexto moderno, não demorou para aprenderem a contorná-lo.
Não sei se o Falstaff de Shakespeare seria o primeiro caso, mas é um dos mais marcantes. Falstaff foi uma de suas grandes criações cômicas, concebido para as peças Henrique IV, partes I e II. É um cavaleiro gordo, bêbado e fanfarrão que acompanha o protagonista, o príncipe Hal. Em Henrique V, ele já está morto e a senhora Quickly faz o seu elogio fúnebre. Mas o sucesso do personagem foi tamanho que, reza a lenda, a própria rainha Elizabeth ficou instigada a vê-lo em outras situações, querendo assistir a como seria Falstaff apaixonado, e desse desejo teria nascido a peça As alegres comadres de Windsor (1602).
Para mim, isso é fascinante. Imagine que você é um inglês do período elisabetano (não imagine demais, porque eu pensei aqui e já me bateu um pânico tremendo… meu Deus, os dentes) e termina de ver as peças em que o Falstaff aparece inicialmente, o que vem com aquela sensação de luto e o famoso gostinho de “quero mais”. Então, pouco tempo depois, suas preces são atendidas e temos mais uma peça - e desta vez uma que oferece um papel de de destaque para o personagem querido. Embora tenha morrido, Falstaff, em termos de material novo, está vivíssimo. E tudo porque ele fez sucesso e todo mundo, incluindo a rainha, dizem, pediu bis. É um sentimento de êxtase, com certeza... mas que, a despeito do talento shakespeariano, oferece um antecedente perigoso.
Séculos depois, teríamos Conan Doyle, que fez do seu Sherlock Holmes uma verdadeira galinha dos ovos de ouro. Sua primeira aparição, o romance Um estudo em vermelho, data de 1887, mas foi com os contos publicados na revista The Strand a partir de 1891 que o personagem explodiu. A coisa foi tão séria que, quando Conan Doyle o matou, num conto de 1893, por pouco não matou a revista junto, dados os 20.000 cancelamentos da assinatura que resultaram disso. A popularidade do personagem levou o autor a ressuscitá-lo posteriormente e, com suas aparições em 60 narrativas (56 contos e 4 romances), Holmes é talvez o personagem literário original mais famoso da história. Conan Doyle encheu os bolsos, mas dizem que ele teria se ressentido de sua criação no final da vida (fonte), porque ninguém mais prestava atenção no resto da sua obra, que é bastante vasta. Bandas que fazem sucesso com uma única música devem sentir a mesma coisa quando tocam ao vivo.
Suponho que, sem saber, Conan Doyle esbarrou numa fórmula poderosa, e a indústria cultural prestou atenção. Não por acaso Holmes é o detentor do Guinness de personagem literário humano com maior número de representações na TV e cinema, para não falar nada das imitações. Afinal, na formulação “indústria cultural” temos um caso em que a palavra é de fato descritiva do fenômeno. É uma indústria, que trabalha investindo em algo para que dali saia um produto que renda dinheiro. E, como eu disse, o processo de criação artística é dispendioso. As 60 histórias de Sherlock Holmes são 60 histórias que não só pouparam Conan Doyle de ter que inventar 60 protagonistas originais do zero como também lhe renderam um sucesso que não seria garantido a outras histórias originais. E fica a lição: não importa se você tem uma história para o seu personagem ou não, o público gosta de familiaridade, de repetição, de ver um personagem já conhecido em outras aventuras, de nunca ter que se despedir de uma figura querida.
Sinto, no entanto, que há um certo prazer infantil em engajarmos com personagens que retornam. Terminar de ler um livro, ver um filme, uma série é, como dito, um luto, um ato de se despedir deles. Sempre se pode voltar para rever ou reler, mas o que você recebeu ali naquela experiência é tudo que vai receber dessa obra, não mais do que isso. Há algo de doloroso, porque tudo na vida tem um fim. A volta daquele personagem, seja num outro livro, um outro filme, uma outra temporada, um spin-off etc, contorna esse luto, mas arrisca empobrecer a experiência em contrapartida. Na medida em que a morte é o que dá sentido à vida, esse triunfo simbólico sobre a morte é também o fim do sentido.
Dramático, né. Disso eu vou saltar agora para os desenhos dos anos 90 como ilustração do que eu afirmo que é um certo caráter infantil da experiência. Nos anos 90 aconteceu um fenômeno muito esquisito em retrospecto, que foi as produtoras de TV encomendarem desenhos serializados com base em filmes que fizeram muito sucesso, por mais inadequado que esses filmes pudessem ser para crianças em termos de conteúdo violento e sexual. O Máskara, Ace Ventura, Debi & Loide (Jim Carrey era completamente inevitável nos anos 90, né), De Volta para o Futuro, Beetlejuice, Loucademia de Polícia, MIB, Godzilla, A Múmia, até a porra do Robocop! É claro que aí não se poupa trabalho para criar personagens novos, especialmente vilões e personagens secundários, mas a familiaridade da Propriedade Intelectual™ (essa palavra maldita) tem o poder de atrair o público para histórias que não o interessariam se os protagonistas fossem outros. E vastas toneladas de plástico na forma de bonequinhos são vendidas no processo.
(A ironia das ironias é que o desenho do Beetlejuice acabou sendo muito melhor do que a sequência que o filme ganhou nos cinemas no ano passado. Ou, pelo menos, é como eu lembro. Sei lá, eu era criança e Beetlejuice 2 foi horrível).
É esse o processo, então. Você produz criações originais que fazem uma única aparição em obras originais até chegar naquela que, por qualquer motivo, acaba fisgando o público. E aí você dá o que as pessoas querem. Em algum momento, aquela criação deixa de ser apenas um personagem e se torna uma Propriedade Intelectual™, uma galinha dos ovos de ouro, uma vaca a ser ordenhada até morrer seca.
Claro que nem sempre funciona: Clive Barker escreveu a novela The Hellbound Heart em 1986, que acabou adaptada para o cinema sob o título Hellraiser, de 1987. O character design e a atuação do ator Doug Bradley fizeram do personagem Pinhead uma figura tão icônica que seria burrice ele não voltar às telas logo depois, e assim saiu Hellraiser II, que não foi adaptação de nenhuma obra literária e sim um roteiro original, embora ainda sob a supervisão de Barker. Dali em diante, no entanto, o envolvimento do autor foi cada vez menor, e a qualidade dos filmes, em todos os níveis, só despenca. O primeiro filme provoca, a gente quer ver mais do Pinhead e sua gangue, mas esse desejo acaba profundamente pervertido. Era melhor não ter aberto esse portal.
E aí a gente começa a pensar nos crossovers. Se uma Propriedade Intelectual™ já rende dinheiro, imagina duas juntas, então? A Wikipedia me diz que o primeiro crossover popular na literatura foi As aventuras de Huckleberry Finn (1885), de Mark Twain, que conta com uma pontinha de Tom Sawyer, protagonista do romance de 1876, o que talvez não seja lá muito emocionante, mas eram outros tempos. Joyce também famosamente meio que fez um joyceverso da sua Dublin, com vários personagens que reaparecem entre o livro de contos Dublinenses e os romances Retrato do artista quando jovem e Ulysses. Já no cinema, diz a Wikipedia também, o primeiro crossover foi Frankenstein Meets the Wolf Man, de 1943, um filme com a avaliação de 25% no infame Rotten Tomatoes e que tem a honra dúbia de ser o antecessor de outros crossovers trash como Freddie vs Jason e Alien vs Predador.
Sim, eu também acho que vale pela chacota, também adoro um filme de terror tranqueira, mas não deixa de ser meio degradante, né. Mary Shelley, quando escreveu Frankenstein, tinha questões bastante sérias em mente que ela procurou explorar no romance. O dr. Frankenstein era basicamente uma versão ficcionalizada do seu próprio marido (PUXADO), e para além das questões sobre os limites da ciência e da húbris técnica que ela apresenta, essa é uma obra que nos leva a ter uma empatia profunda com o monstro em certos pontos (ele é inesperadamente culto e articulado no livro para quem só o conhece da cultura pop). Óbvio que não sou contra entretenimento barato, nem a favor de sacralização de obras literárias, mas eu mesmo ficaria meio puto se eu escrevesse alguma coisa que fosse importante para mim, em termos intelectuais e emocionais, depois pegassem isso para produzir lixo barato para encher os bolsos de produtores. Por outro lado, é bom que morto geralmente não opine. Impasses.
Do crossover para a carreta-furacanização, portanto, é um pulo. É só você, muito cinicamente, explorar o apelo das suas Propriedades Intelectuais™, botando-as para interagir a despeito de qualquer lógica narrativa interna às suas histórias originais. Espera-se que o público já vibre só de saber que o fulano ou a fulana vão aparecer lá. Esse contato, via de regra, tende a reduzir o que está em jogo para cada personagem, porque, quando a coisa chega nesse ponto, eles já deixaram de ser personagens, um termo que pressupõe um propósito numa narrativa, e agora são Propriedades Intelectuais™. O que a Marvel fez com o cinema durante mais de uma década inteira foi um processo violento de carreta-furacanização e, embora pareça que o império deles tenha ruído (graças a todos os deuses), eu sou hesitante em respirar aliviado.
E isso me leva ao que me motivou a pensar no termo carreta-furacanização. Não foi nem um livro, nem um filme, mas algo mais constrangedor: um jogo de cartinha.
Para quem tem a sorte de não conhecer, Magic: the Gathering foi uma mina de ouro que o matemático e game designer Richard Garfield descobriu em 1993. O jogo combina aspectos do clássico hobby infantil de colecionar e trocar figurinhas a uma mecânica estratégica complexa e ambientação de fantasia, de modo que cada jogador constrói o seu deck a partir de um repertório cada vez maior de cartas e o usa para jogar com amigos lançando magias e convocando monstros para brigarem. Curiosamente, Magic é um jogo com historinha, que às vezes transparece no chamado flavor text das cartas. O enredo é obviamente absurdo e rocambolesco, mas entre isso e as artes das cartas mais antigas (antes de tudo ser comprado pela Hasbro em 1999), havia um certo charme no conjunto da obra, sobretudo para quem foi adolescente no começo do século. Recomendo muito não cair nesse buraco, porque não é à toa que chamam Magic em inglês pela alcunha carinhosa de crack de papelão2.
Enfim, nos últimos anos os designers do jogo começaram a explorar uma outra galinha dos ovos de ouro que é a série Universes Beyond. Nessa série, eles imprimem cartas baseadas em filmes, séries e jogos, como Senhor dos Anéis, Dr. Who e Final Fantasy, o que tem sido motivo de controvérsias, porque, por um lado, serve para atrair jogadores novos; por outro, o senso de ridículo que já permeia a experiência toda dispara pelo teto e tem alienado os nerds mais velhos. Bizarramente, para a perplexidade de todos, uma dessas propriedades recentemente anunciadas foi... Bob Esponja. E o mais absurdo, para mim, é que, quando se pensa que o set do Bob Esponja está saindo quase ao mesmo tempo que o de Final Fantasy, a experiência surreal de poder botar Sephiroth, o vilão dramático de FF7, para brigar com o Lula Molusco ainda assim não é a mais absurda pela qual o antagonista já passou (ele contracena com o Pateta e o Pato Donald na série Kingdom Hearts, que já é uma carreta-furacanização do RPG).
É claro que um joguinho ser carreta-furacanizado não deve surpreender ninguém, ainda que possa doer na fanbase. Eles são uma empresa (subsidiária da Hasbro, lembre) que vende recortes de papelão por dezenas, até centenas de dólares. E empresa, via de regra, age de um jeito predatório e filhodaputa. Mas parece que os fãs não estão muito felizes. A coisa toda é basicamente um meme, mas é aquilo, né. Memes têm graça quando são feitos por pessoas. Grandes corporações fazendo memes e lucrando com isso é constrangedor e meio repulsivo3.
Reconheço que é um pouco exagerado traçar uma linha que parte da reprise de Falstaff em Shakespeare e culmina no Bob Esponja em MtG, mas eu sei que vocês gostam mesmo é quando eu fico revoltado e flerto com o absurdo. Em todo caso, eu acho que vale a pena pensar no que a gente se engaja em termos de experiência midiática, porque, se deixar, é fácil você acabar consumindo (e por mais que eu odeie esse termo, é o correto nesse contexto) uma dieta midiática 100% baseada em Propriedades Intelectuais™ e acabar com a imaginação tão atrofiada a ponto de achar que o cúmulo da criatividade é, sei lá, misturar Star Wars com Senhor dos Anéis. A última década do cinema foi prova disso.
Se vocês acham que eu estou exagerando, outro dia mesmo eu esbarrei num site de resenhas de TV, quadrinhos e livros, no qual um dos resenhistas começava a sua minibio de 9 linhas com algo como “formado em magia na casa Corvinal” e terminava como “colaborador do dr. Manhattan” (não cito ipsis litteris para ninguém ir atrás da pessoa). Alguém que não tem vergonha de se identificar assim publicamente é capaz de qualquer coisa.
Os tech bros do vale do silício estão aí desde os anos 2000 caminhando para o seu momento de apoteose, e nós vivemos à sombra da desgraça que eles seguem causando. Uma dessas consequências, talvez a menor delas, quando se põe as coisas em perspectiva, é a ascensão da cultura nerd. Eu ainda fico besta e constrangido quando lembro que existem, na vida real, como ameaças reais, uma empresa de tecnologia militar chamada Anduril e outra de vigilância de nome Palantir, ambas referências ao Senhor dos Anéis. Quando pensamos que existe uma possibilidade, no futuro, de sermos mortos durante um protesto por um drone com um lança-chamas batizado em homenagem a algum dragão de Game of Thrones, é claro que o processo de carreta-furacanização cultural parece uma coisa pequena e a gente passa por chato, que nem o Alan Moore quando denuncia o fascismo das fantasias de super-herói. Mas aí, se tudo continuar por essa via, se você quiser uma imagem do futuro, vai ser só imaginar o Mickey e o Fofão pisando em cima de um rosto humano - para sempre.
Assinar a Mercurius Delirans literalmente não custa nada e eu não tenho planos de monetizar a newsletter tão cedo. Se eu te ajudei a se distrair um pouco das dores da existência neste plano físico e você quiser dar uma força, sempre pode comprar meus livros… incluindo o Minguante, meu novo volume de poemas recentemente publicado pela Ofícios Terrestes (link para comprar online aqui).
Tem exceções, claro, mas é uma decisão ousada, no mínimo.
Já estive nesta vida, mas hoje estou limpo.
Pela mesma lógica, eu vou ter que defender quem escreve fanfic, porque, embora não seja algo que eu leia e poderia encaixar na crítica geral deste texto, eu respeito a dedicação a um trabalho artesanal motivada pelo tesão irrefreável.
hahaha achei que chegaríamos no Fortnite também
“mas eu sei que vocês gostam mesmo é quando eu fico revoltado e flerto com o absurdo”.
Sim.