M. D. #28 – Quando que fica engraçado?
Ou: uma leitura excessivamente detida do comecinho de “A boba da corte”
Se você escreve uma obra de “humor ácido” para falar mal das elites e ela recebe um blurb do Gregório Duvivier, podemos concordar que a empreitada já fracassou aí mesmo. Nem precisa abrir o livro. Nada contra o Gregório pessoalmente, tenho certeza de que deve ser muito gente boa1. Porém, enquanto uma figura dessa esquerda progressista elitizada cujos pais possuem página na Wikipédia e é descendente do comendador Theodoro Duvivier e da Pérola Byington (aquela mesma que dá nome ao hospital), ele meio que devia ser o alvo aqui. É como mostrar a sua banda de black metal para o Papa e ele dizer que adorou. Pura derrota.
Apesar que, né, o Gregório é carioca, e A boba da corte satiriza a elite paulistana. Nada mais carioca do que rir da cara de paulistano.
Se você vem acompanhando os lançamentos recentes na literatura contemporânea, já deve ter ficado sabendo do A boba da corte, novo romance de Tatiane Bernardi - mais conhecida como Tati Bernardi, mas “Tati” é um apelido e, como eu aprendi com o rato Miguel, apelidos são para amizades. Teve já resenha nos grandes jornais, textos elogiando e xingando inclusive num mesmo veículo… e, bem, nessas bateu uma vontadinha de ler. Em parte, pelo elemento da curiosidade mórbida. Minhas expectativas, desnecessário dizer, não são muito altas. Mas sempre tem o efeito do vai que, né? Vai que o livro, na verdade, é bom. Eu admito que meus preconceitos (de classe, claro, pois venho de uma longa linhagem de Adrianos Imperadores) podem estar turvando minha visão, mas estou sempre disposto a encarar com boa vontade até os livros que me fazem torcer o nariz, julgá-los com base nos próprios méritos e dar o braço a torcer, se for o caso.
O que eu não estou disposto é a pagar 70 reais num romancete de 100 páginas. Por isso, na edição de hoje vou me debruçar detalhadamente, talvez até demais, sobre a amostra que está disponível no site do careca filho da puta. Está aqui o link, vocês podem ir lá, sentir vergonha alheia com o blurb do Gregório e aí clicar em “Ler amostra”.
Se meus seguidores estiverem dispostos a fazer uma vaquinha para eu comprar o livro inteiro, ler e escrever uma resenha completo, aí meu PIX está nos parágrafos finais. Eu já não ganho nada com a newsletter, arrisco minha reputação e inclusive dedico mais tempo a esses textos do que devia. Começar a perder dinheiro aqui, aí também é demais.
A primeira coisa que me pega ao ler A boba da corte é o quanto o começo é insosso. A primeira página de um livro, bom frisar, é o momento em que esse bloco de celulose tenta se vender para você, o momento para criar intrigas, para fazer o público ficar interessado e/ou deslumbrado e querer prosseguir. Um começo insosso pode ser uma ousadia, tipo “sou tão foda que estou ciente de que você vai superar esse começo truncado, porque sabe que vai ser do caralho depois”, mas não acho que seja o caso. Os três primeiros parágrafos estão firmemente inseridos naquela tradição da prosa jornalística que predomina na literatura brasileira: ágil, seca, acessível, sem espaço para ambiguidades.
“Mas, Adriano, ‘insosso’ é uma questão de subjetividade”. Será mesmo? Leia devagar aqui comigo, oração por oração, e me diga se por acaso cada palavra ali tem alguma função que não seja puramente perfunctória em termos de transmitir informações. Nesses primeiros três parágrafos, não temos nem um detalhe, sei lá, num uso de adjetivos, para dar um toque pessoal na narração.

Assim como o filme Snakes on a Plane (Serpentes a Bordo em português) que gira em torno de um acontecimento que faz com que um avião fique, bem, cheio de cobras, Tatiane tem um tema central no livro dela e não perde tempo em chegar nele. Sabemos que ela veio de um bairro da ZL de São Paulo e que agora anda com gente chique e metida, mas se sente deslocada por conta de suas origens. Essa é a sinopse do livro, afinal. Por acaso o lugar onde ela foi criada, o largo Maranhão, e a rua onde ela mora no bairro nobre de Higienópolis têm o mesmo nome, e a amiga dela - uma amiga cujo nome desconhecemos, mas que é “da elite carioca” - é aparentemente burra demais para usar o Uber direito e foi parar no endereço errado2. Quando essa amiga manda uma mensagem apavorada por estar num “lugar medonho”, nossa protagonista começa a ter um ataque de pânico. Cai a ficha de que ela não pertence àquele espaço com aquela gente, por mais que aquele espaço seja a sua própria casa.
Confesso que eu acho um desafio escrever um romance em primeira pessoa. É difícil criar uma voz marcante, uma figura que o público queira acompanhar durante o romance todo. Com a terceira pessoa, a gente consegue justificar a prosa seca como um recurso válido, porque há certas aplicações para a ilusão de neutralidade. Na medida em que a voz é o personagem, prosa seca em primeira pessoa só nos diz que aquela figura não tem lá muita personalidade. E, tudo bem, dá para fazer coisas com isso. Vamos ver onde a coisa vai dar.
Os dois parágrafos seguintes são um pouco melhores. Neles a protagonista volta àqueles tempos idílicos da infância e adolescência no Tatuapé, o que injeta alguma cor e detalhe: tudo aquilo que ela viveu e faz parte dela, claro que é deprimente que isso seja abominável para suas amizades, o que desencadeia a sua crise. Esse retrato que ela pinta, meio Irmão do Jorel, me parece um ponto positivo. Talvez tenha algo de interessante aí.
Então ela volta ao presente: sua festa de aniversário de 43 anos, seus convidados (com uma análise meio perturbadora de suas origens étnicas) e sua cozinheira, a Luara. A Luara é uma mulher negra que está ali em posição de funcionária e todas as cenas em que ela aparece são constrangedoras, porque aquela gente rica quer apaziguar a própria consciência bajulando-a ao ponto do ridículo. Isso é de propósito, evidentemente: estamos aqui em território de The Office ... ou estaríamos, se a narradora deixasse que os outros personagens se expressassem.
Assim chegamos ao que é, para mim, uma das coisas mais irritantes no estilo desse livro, pelo menos dentro da amostragem a que eu tive acesso. Sabem aquela máxima do show, don't tell3? Teria sido interessante se fôssemos apresentados à Luara e víssemos os diálogos constrangedores, os elogios forçados, tipo o “você parece uma rainha”, em tempo real. No entanto, nossa narradora parece que tem horror em sair do holofote e, em vez de desenvolver a cena, que poderia facilmente ocupar algumas páginas, o que ela nos oferece é um resumo do que aconteceu, como se estivesse com pressa. Seria justificável dentro de um livro mais longo em que poderia haver a necessidade de enxugar alguns momentos, mas aqui? Pra que essa pressa toda? Não é como se a narrativa tivesse algum lugar para ir.
Da Luara e dos momentos meio A vida de Tina de zoar a esquerda elitizada, saltamos para a ex-amiga da protagonista, a Marcela, que ocupa vários parágrafos. De novo, mais telling do que showing: Marcela é “o tipo de gente desinteressante que precisa ser má para que suas palavras disfarcem sua figura atônica”. Aí ó: ela acabou de apresentar a Marcela e já falou o que é para a gente achar dela. Mais pra frente, ela é descrita como “trivial, enfadonha e ardilosa”. Todos os adjetivos que a narradora economizou nos parágrafos de abertura, ela gasta aqui. Teria sido mais respeitoso com quem está lendo se ela deixasse a gente formar nossas próprias conclusões, não? Afinal, se Marcela é essa cobra toda, vai ficar claro para a gente se você deixar ela aparecer. Esse recurso em que a própria narradora descreve alguém só funcionaria de um jeito interessante se houvesse espaço para a ironia, para a gente chegar à conclusão de que aquela pessoa não é como está sendo descrita, que é o tal do narrador não confiável. Não sei se isso acontece mais pra frente ainda, mas acho duvidoso: a impressão que eu tenho é que, sendo este livro uma autoficção, Bernardi está aproveitando o holofote para contar anedotas que ela mesma presenciou, fofocas da vida decadente de gente rica, sem desenvolver as cenas e sem qualquer amarração, talvez como um tipo meio mesquinho de vingança. Mas estou especulando.

Esse é o caminho do primeiro capítulo até então: sua amiga carioca manda uma mensagem no Uber apavorada por estar perdida num lugar medonho, flashbacks da infância, voltamos para a festa, flashbacks cringe das interações com a cozinheira e aí a questão da cozinheira a faz lembrar da Marcela, que foi para a protagonista basicamente o que a Sidney Sweeney foi para amiga pobre dela na primeira temporada de The White Lotus4. No meio disso, umas bravatas pueris: “Amigo íntimo dos monarcas, o bobo da corte é sabidamente o único que conhece a fundo as podridões de todos e, protegido pelo humor, pode humilhá-los”.
Agora lê lá o blurb do Gregório e me diz se ele parece humilhado.
Depois uma digressão sobre palhaços nos leva ao parágrafo metalinguístico: “Há pelo menos cinco anos este livro quer sair de mim”… o que eu achei meio triste, porque uma pessoa que passa 5 anos escrevendo um livro de 100 páginas trabalha num ritmo médio de uma página e meia por mês. E de alguém que trabalhe nesse ritmo eu esperaria uma prosa mais elaborada e menos ginasial.
Mas, para dar crédito a Bernardi, essa técnica de trabalhar mais no tempo psicológico do que no tempo real revela um grau de sofisticação. Seria mais básico seguir a sequência cronológica dos eventos e, embora ela esteja ancorada ao momento, conforme observamos o desenrolar de sua festa malfadada, a narrativa salta aqui e ali por meio de conexões que são mais temáticas do que qualquer outra coisa, o que nos oferece uma janela bem-vinda à psiquê da personagem. Infelizmente, a forma como ela faz isso é canhestra. Como eu já reclamei, ela parece ter pressa e não desenvolve as cenas. Algo que poderia demorar umas três páginas é resolvido em três parágrafos, e vamos que vamos. Ao mesmo tempo, ela não é acelerada o suficiente para constituir um fluxo de consciência em que todos os tempos da narrativa conviveriam num mesmo plano e resultaria num texto mais desafiador e, portanto, menos marketável. Como resultado, não há caracterização direito nem mesmo da protagonista.
E isso nos leva ao dilema barthesiano que atormenta esse livro. Vocês sabe, né, Morte do Autor, a ideia de que a pessoa que escreve não tem primazia para decidir a validade das interpretações, etc. Mas calma lá. Pegando essas primeiras páginas de A boba da corte para ler, o meu primeiro impulso é levar a narradora a sério. Não consigo me identificar com o problema dela, mas a literatura está aí para isso, né, fazer a gente empatizar com figuras muito diferentes de nós. No entanto, em entrevista, a autora afirmou que escreveu o livro para tirar sarro de si mesma. E eu entendo a lógica, mas não vejo. Sim, ao tirar sarro da elite, com o fato de que ela era deslumbrada por essa elite e desejosa de fazer parte dela, ela está tirando sarro de si também, por tabela. Mas fica a pergunta: quando vai ficar engraçado?
Em que parte, Tatiane, você está tirando sarro dessa sua personagem que é você mesma? É tudo chacota? Eu devo levar a sério o horror repentino que ela sente ao descobrir que o lugar onde ela cresceu é medonho para essa gente ou é para desconsiderar como um faniquito de uma branca rica? Porque eu estava disposto a levar a sério (e debochar de ataque de pânico é escroto), mas agora não sei mais. O ridículo está no fato de que o comportamento que ela tem com a Luara, carregado de culpa branca, é igual ao comportamento dos outros ricos idiotas? Está na bravata de “ai, o bobo da corte destrói os monarcas por dentro”? Ou no too much information de quando ela afirma que descobriu o prazer anal só aos 43 anos com o namorado almofadinha dela que tem “dedos exploradores de cu”? Porque nada disso é engraçado por si só. É meio patético. Para chegar a ter graça, é preciso trabalhar essa matéria-prima com a linguagem, e ela não faz esse trabalho. O que ela faz é entregar uma massa de farinha de trigo, açúcar e ovo com casca dizendo que é um bolo. Alguém me diz se fica engraçado depois? Porque a tiração de sarro sem ter graça é só bullying.
No fim, eu acho que é isso que me frustra aqui. Nenhum dos elementos é fundamentalmente ruim. Nada de muito original, mas a falta de originalidade tem a vantagem de oferecer um repertório para você se inspirar e dialogar. Satirizar os excessos dos ricos é tão velho quanto o banquete de Trimalquião no Satíricon. Desconfortos de classe e críticas a costumes são a base do romance realista. O fogo amigo na esquerda provavelmente é tão velho quanto a própria noção de esquerda política. E histórias de alguém que obtém sucesso e se desilude com tudo são meio que a grande narrativa arquetípica de todos os músicos, daí o fato de tantos deles terem histórico de abuso de heroína. Até o simbolismo do bobo ainda rende pano pra manga. O fato de que Bernardi decidiu pegar esses elementos para escrever a coisa mais sem graça possível é o que mata esse romance para mim.
E assim se encerra a amostra do livro. Voltando ao presente, nossa protagonista passa mal e toma um misto de Rivotril, Vonau e Novalgina enquanto tenta fazer a festa terminar, sem sucesso (é nesse finalzinho que ela descreve seu namorado explorador de cu, o Rafael). Como não sei o que acontece depois, vou chutar algumas possibilidades, indo da mais mundana para a mais absurda:
A protagonista descobre que, apesar do seu desconforto, ela é igual àqueles ricos que ela abomina. Muitas metáforas com espelho;
A protagonista descobre que, ironicamente, ela é descendente de aristocratas de não sei da onde, o que faz dela mais nobre do que todos eles;
A protagonista tem um surto assassino como resultado das interações medicamentosas e ataca os convidados com um machado;
Plot twist: nenhum dos convidados existe, são todos fantoches, no melhor estilo Salad Fingers;
Um dos presentes traz um chimpanzé, mas o animal, estressado com aquele tanto de gente, sai de controle e mutila os convidados (a amiga carioca é morta ao chegar - ironia! O perigo real não ficava no Tatuapé);
Um disco voador chega na frente do apartamento e abduz todos os bem nascidos, deixando só quem nasceu pobre;
A ambientação vai aos poucos sendo transformada num castelo medieval, os amigos dela viram nobres e ela mesma se vê feita em uma boba da corte literal;

É claro que é difícil julgar um livro inteiro com base na amostra disponível na Amazon. Eu tive acesso a um total de 36 parágrafos. Não é um número irrelevante (ainda mais num volume tão mirrado), mas, ao mesmo tempo em que tem bastante espaço ainda para pegar embalo e melhorar, essas primeiras páginas são o momento em que o livro diz a que veio, e eu não estou impressionado. Pelo contrário, é até meio doloroso de ler, meio como um post de blog da era Fora Temer, e fica ainda mais difícil pelo fato de que eu fiz essa leitura detida.
Caso vocês queiram bater palma para o louco dançar, minha chave PIX é adrianoscandolara@gmail.com. Eu prometo que se eu receber trocados o suficiente para adquirir pelo menos a versão kindle do livro5, eu vou ler e escrever uma resenha completa para a Mercurius Delirans. E aí a gente descobre se dá, pelo menos, para dar uma risadinha em algum momento.
Assinar a Mercurius Delirans literalmente não custa nada e eu não tenho planos de monetizar a newsletter tão cedo. Se eu te ajudei a se distrair um pouco das dores da existência neste plano físico e você quiser dar uma força, sempre pode comprar meus livros… incluindo o Minguante, meu novo volume de poemas recentemente publicado pela Ofícios Terrestes (link para comprar online aqui).
Para mim, ele sempre vai ser o namorado zoófilo do esquete Arrá do Porta dos Fundos, de 11 anos atrás. Nunca mais eu consegui ver um molho pesto sem a cena final aparecer na minha cabeça, o que eu acho um feito. Como poeta, porém, eu desgosto bastante.
Então talvez ela esteja, sim, zoando a elite carioca…
É óbvio que esse conceito não é uma regra inflexível e incontornável. Dá pra fazer muita coisa mais telling do que showing e tem alguns autores consagrados que fazem isso bem, mas precisa ter domínio da arte literária para ficar decente.
Vocês vão reparar que os meus paralelos aqui neste texto são todos do audiovisual. Interpretem o fato como quiserem.
Me mandarem o pdf do livro não vai ser o suficiente. Embora a newsletter seja gratuita, eu sinto que, para essa empreitada, eu precisarei ser remunerado.
A autora em seus podcasts não deixa seus entrevistados falarem, interrompe e é mal educada na sua incapacidade de ouvir. Imagina em um livro só seu onde ela pode falar por horas a fio, sem ter ninguém para atrapalhar. Chatésima. Não entendo esse jornalismo publi que fica batendo palma pra esse livro. (não que eu tenha lido mais do que a amostra da Amazon).
Eu tive o (prazer? desprazer? prazer?) de esbarrar com alguns outros trechos do livro por aí e digo:
Tem coisas que seriam geniais se fossem assumidas como paródia. Mas como não é o caso - e não é o caso MESMO - é só uma grande vergonha alheia.
E mentalizando para a vaquinha render e nós vivermos a maravilhosa experiência dessa resenha!